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Flow, a Crítica | A melhor animação do ano não veio de Hollywood

Num mundo onde os filmes nos afogam em diálogos, “Flow” prova que, por vezes, é preciso calar o bico para nos deixar de boca aberta.

Há momentos raros no cinema em que a ausência de diálogo diz mais do que mil palavras gritadas aos sete ventos. “Flow”, a mais recente obra do realizador letão Gints Zilbalodis, é precisamente um desses momentos. O filme é um tsunami audiovisual que arrasta o espectador numa corrente de emoções tão pura quanto a água que inunda o seu universo animado. Confesso que entrei na sala de cinema com expectativas moderadas e saí de lá a nadar num mar de admiração. Este é, sem dúvida, um dos filmes de animação mais refrescantes dos últimos anos.

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Uma estética que flui contra a maré

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Num mundo afogado pela incerteza, onde o rasto da Humanidade se reduz a ruínas silenciosas e memórias sem dono, os animais governam. Entre eles, um gato preto, sem nome, sem passado, movido apenas pelo instinto e pela necessidade de seguir em frente. Sem palavras, sem explicações, apenas a fluidez do momento a guiar cada passo. É neste cenário que Flow se desenrola, uma jornada de sobrevivência e descoberta onde o presente é tudo o que existe.

Num tempo em que os estúdios de Hollywood parecem obcecados com pelos realistas e texturas perfeitas (um verdadeiro fetiche peludo que deve levar décadas na renderização), Zilbalodis opta corajosamente por nadar contra a corrente. A equipa artística cria um mundo visualmente deslumbrante que nunca tenta esconder a sua natureza artificial – e é aí que reside a sua beleza. As câmaras simulam movimentos manuais, trepidantes, com panorâmicas vertiginosas que fariam o próprio Terrence Malick ficar enjoado (mas num bom sentido, prometo).

Há uma cena particularmente sublime em que a câmara acompanha os animais de forma contínua que me fez questionar se as minhas pipocas tinham sido inadvertidamente temperadas com substâncias alucinogénias. Isto é cinema puro, meus amigos – aquele tipo de cena que inegavelmente justifica a invenção do cinematógrafo, como diria o meu amigo cinéfilo depois de dois copos de vinho tinto.

Uma arca de Noé sem Noé

Flow
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Se pensarmos bem, “Flow” é essencialmente uma versão da Arca de Noé em que Noé não aparece e os animais têm de se desenrascar sozinhos – o que, convenhamos, é provavelmente o que aconteceria na vida real. A diversidade de personagens é absolutamente deliciosa: um retriever energético (claramente o extrovertido do grupo que organiza jantares e insiste em jogos de tabuleiro), um lémure cobiçoso (aquele amigo que pede sempre “só um bocadinho” da tua sobremesa), uma ave-secretária orgulhosa (a típica colega de trabalho que sabe tudo e faz questão de o demonstrar), uma capivara engenhosa (o MacGyver do reino animal) e um gato preto observador (basicamente, todos os gatos que já existiram).

O facto de conseguirmos sentir tanto por estas personagens sem ouvir uma única palavra de diálogo é um testamento à mestria de Zilbalodis. O meu coração bateu mais forte por um grupo de animais digitais do que por muitos humanos reais que conheço – uma revelação inegavelmente perturbadora sobre a minha vida que vou guardar para discutir na próxima sessão de terapia.

Animosidades à parte, a verdadeira magia está em como “Flow” transforma rivalidades instintivas em alianças frágeis — o Gato, solitário por natureza, aprende a partilhar um barco minúsculo com o lémure que lhe roubaria a comida, o cão que o morderia noutro contexto, a capivara que improvisa pontes e a ave que, ironicamente, se torna a sua confidente silenciosa. Através de gestos mínimos — um olhar prolongado, um gesto de proteção, um sacrifício discreto — percebemos que a empatia não é humana. É universal. E se isso não é uma lição humilde para nós, primatas falantes, então que me enterrem com o guião do mais recente blockbuster da Marvel.

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A profundidade nas águas rasas

flow a deriva critica
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Seria fácil descartar “Flow” como apenas mais um filme sobre animais fofinhos, mas isso seria como dizer que “Moby Dick” é um livro sobre pesca. Por baixo da superfície aparentemente simples, Zilbalodis mergulha em águas filosóficas profundas. A forma como o filme examina as estruturas de poder que dividem as sociedades, através da metáfora do desastre natural que força predadores e presas a coexistirem, é tão subtil quanto poderosa.

Há uma cena particularmente comovente em que os animais contemplam o seu reflexo na água, unidos apesar das suas diferenças, que me fez deitar uma lágrima furtiva (que prontamente atribuí a uma alergia súbita ao ar condicionado da sala, para manter a minha reputação de crítico implacável). Assim, em muitos aspetos, “Flow” funciona como uma alegoria ambiental sem nunca cair no discurso moralista que tanto abunda no cinema contemporâneo. É um filme que respeita a inteligência do espectador para lhe permitir chegar às suas próprias conclusões – uma raridade refrescante nos dias que correm.

Desta forma, num filme sem diálogos, a banda sonora torna-se ainda mais crucial, e “Flow” não desilude neste aspeto. A composição musical complementa gloriosamente as imagens, com ambientes suaves, sons intergalácticos e momentos de silêncio estrategicamente colocados que permitem que a narrativa respire como uma criatura viva. O clímax do filme, em particular, é uma experiência quase espiritual, combinando som e imagem de uma forma que transcende o mero entretenimento e entra no território da arte pura.

A evolução de um mestre

Flow: À Deriva © Films4You

Assim, é fascinante ver como Zilbalodis evoluiu desde os seus primeiros trabalhos. De “Aqua” (2012), a sua curta-metragem sobre um gato deslocado por uma inundação, até “Flow”, podemos traçar a jornada de um artista em constante desenvolvimento. É como se o jovem letão que experimentava com Photoshop e Toon Boom nos inícios de 2010, enquanto os seus colegas adolescentes andavam obcecados com Katy Perry e LMFAO (um detalhe histórico que me faz sentir vergonhosamente velho), tivesse estado a preparar-se para este momento de triunfo.

Há algo inegavelmente inspirador na dedicação de Zilbalodis ao seu ofício, uma lição sobre paciência e persistência que ressoa além do próprio filme. À medida que o visionamos, tornamo-nos testemunhas não apenas de uma narrativa sobre sobrevivência, mas também da evolução de um contador de histórias extraordinário. “Flow” é inegavelmente uma dessas raras joias cinematográficas que consegue ser simultaneamente acessível e profunda, visualmente deslumbrante e emocionalmente ressonante.

Nota Final: 9/10 Sardinhas para o tareco

Assim, se este filme estiver em exibição perto de ti, não andes – corre, nada ou faz o necessário para o veres no cinema. E não te esqueças de agradecer aos deuses da animação por ainda permitirem que obras de arte como esta fluam até nós.

Trailer | Flow

Já te aconteceu sair de uma sala de cinema a flutuar de emoção por um filme sem palavras, ou será “Flow” a tua primeira vez? Partilha a tua resposta nos comentários.

Flow, a Crítica
Flow Gints Zilbalodis Poster

Movie title: Straume

Movie description: Numa paisagem submersa, um gato solitário navega um mundo pós-dilúvio onde instintos de caça e medo ditam as regras. Quando um barco improvisado se torna a única salvação, o felino vê-se forçado a partilhá-lo com um lémure ladrão, um cão entusiasta, uma capivara inventiva e uma ave-secretária de olhar penetrante. Sem uma palavra, o filme de animação de Gints Zilbalodis entrelaça tensão e ternura, transformando rivalidades ancestrais em laços de sobrevivência.

Date published: 28 de August de 2024

Country: Letônia

Duration: 85'

Director(s): Gints Zilbalodis

Genre: Aventura, Fantasia, Animação

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  • Vítor Carvalho - 90
90

Conclusão

“Flow” é um tsunami de emoções silenciosas que reescreve as regras da animação com ousadia líquida. Gints Zilbalodis transforma pixels em poesia ao entregar um universo onde predadores e presas dançam numa coreografia de sobrevivência — sem uma palavra, mas com olhares que cortam mais fundo que discursos. A estética, deliberadamente artificial, é um soco no estômago da perfeição hollywoodiana, enquanto a banda sonora respira como um organismo vivo. Entre cenas que flutuam entre o sublime e o alucinógeno, o filme prova que empatia não precisa de língua, apenas de coração. Uma obra-prima que faz blockbusters parecerem piadas sem graça. 9/10 Sardinhas para o tareco — mergulha antes que a maré baixe.

Pros

  • Estética visual inovadora que desafia o realismo hollywoodiano, com animação artificialmente bela e movimentos de câmara criativos.
  • Personagens expressivos sem diálogo, desenvolvidos através de gestos mínimos e interações emocionalmente ressonantes.
  • Banda sonora imersiva que complementa a narrativa, elevando-a a uma experiência quase espiritual.
  • Allegoria ambiental subtil sem moralismos, explorando coexistência e empatia de forma universal.
  • Profundidade filosófica sob uma premissa aparentemente simples, incentivando reflexão individual.

Cons

  • Movimentos de câmara intensos podem causar desconforto visual ou vertigens em espectadores mais sensíveis.
  • Abstração narrativa pode desafiar quem prefere histórias convencionais ou explicações explícitas.
  • Intensidade emocional elevada, com momentos que podem ser avassaladores para alguns e insignificantes para outros.
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