Fortunata

11ª Festa do Cinema Italiano | Fortunata, em análise

“Fortunata”, o mais recente e multipremiado filme do italiano Sergio Castellitto, é um dos títulos exibido na secção Panorama da 11ª edição da Festa do Cinema Italiano.

fortunata critica festa do cinema italiano

Não se pode dizer que o melodrama com traços de comédia caricaturada seja uma grande raridade no panorama do cinema italiano. Quase tão comum é o realismo cinematográfico pontuado por uma certa ideia de urgência social, pelo menos desde o tempo das vanguardas que se despoletaram nos anos 40 com a queda do regime de Mussolini. Em “Fortunata” de Sergio Castellitto ambos estes impulsos, pedras basilares da cinematografia nacional de Itália, unem-se, resultando num filme tão tipicamente italiano que poderia ser apresentado como uma paródia do tipo. Nada disso impediu o filme de alcançar algumas glórias, tendo ganho o prémio de Melhor Atriz aquando da sua estreia na secção Un Certain Regard do festival de Cannes, assim como o galardão David di Donatello na mesma categoria.

Desenrolando-se principalmente junto ao Aqua Alexandrina, numa zona saturada por atividade imigrante da cidade de Roma, “Fortunata” é um retrato um tanto ou quanto amorfo da vida da sua personagem titular. Ela é uma cabeleireira recentemente divorciada com ambições de uma vida melhor e uma filha descontente. As ambições da mãe e a infelicidade da menor são duas faces da mesma moeda. É que Fortunata está a tentar arranjar dinheiro suficiente para fundar e gerir o seu próprio centro estético, com serviço de cabeleireiro e, possivelmente até tatuagens. Infelizmente, a pequena Barbara opõe-se às necessidades do trabalho da mãe, exigindo acompanhá-la nas suas viagens para casa dos clientes que vão desde burgueses até amigas de Fortunata sem grandes posses.

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A matriarca trabalhadora, negando os desejos da filha, ora deixa-a na escola ou aos cuidados do seu melhor amigo, um aspirante a tatuador seu vizinho que dá pelo nome de Chileno e sofre tanto de bipolaridade como do fardo de uma mãe demente que, após uma vida nos palcos germânicos, apenas comunica através de citações saídos da “Antígona” de Sófocles. Mais do que organicamente construídas com atenção e respeito pela sua inerente humanidade, a maior parte das pessoas na vida de Fortunata nunca parecem algo que não construções textuais edificadas por argumentistas com vontade de escrever “personalidades coloridas”.

Mesmo o seu ex-marido é definido por uma série de clichés ribombantes, apresentando-se como um segurança violento e possessivo, um homem que não aceita a separação ou a vontade da ex-mulher, que ignora a filha a não ser quando é para magoar sua mãe e que se pavoneia numa camisa demasiado apertada com a gola aberta para mostrar os pelos no peito e um crucifixo dourado. Talvez por tudo isso, Fortunata veja no psicólogo da filha uma ilha de calma no meio da tempestade cacofónica que é a sua vida no meio de tais personagens. Uma coisa é certa, durante as primeiras cenas passadas no consultório do Dr. Patrizio o espectador quase sente alívio físico ao poder, por alguns minutos, refugiar-se da constante gritaria que permeia o resto deste melodrama.

Tal oásis auditivo e tonal não dura, há que se referir. Ao início, depois de um tribunal ter exigido que Barbara fosse ao psicólogo no seguimento das suas constantes cuspidelas como sinal de insatisfação e desrespeito, Patrizio parece ser somente mais um psicólogo mal escrito, mas interpretado com doce sinceridade e uma pátina de reconfortante carinho e profissionalismo. Essas noções, incluindo o silêncio e a prestação não histriónica do ator, saem logo de cena quando Fortunata e o médico dormem juntos, desencadeando uma série de eventos que dá finalmente uma forma à narrativa do filme.

A forma é a de uma espiral de desgraças, cada uma mais horrenda que a outra, a abater-se sobre os ombros da personagem titular. Tal estruturação de um retrato realista enquanto coleção de misérias é um dos maiores e mais insidiosos clichés de filmes sobre realidades sociais abaixo da ideia normativa de classe média confortável, especialmente no panorama do cinema europeu. Felizmente, Castellitto, mesmo não sendo um grande realizador, traz alguma leveza e jovialidade aos procedimentos narrativos, usando escolhas musicais meio óbvias, meio insólitas, uma estética entre o televisual e o realismo urbano, assim como uma panóplia de prestações energéticas.

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Aliás, verdade seja dita, a grande redenção de “Fortunata” e talvez a única razão para um espectador inocente se sujeitar a este indisciplinado drama é a prestação premiada de Jasmine Trinca. A atriz, conhecida internacionalmente pelo seu trabalho em “O Quarto do Filho” e “Mel”, evita os clichés mais gritados do guião, não oculta as partes mais abrasivas das suas ações em cena e confere necessária dignidade e resiliência naturalista à personagem de Fortunata. Ela arranja mesmo modo de tornar algumas revelações tardias sobre o passado traumático da protagonista em algo relativamente credível, o que não é tarefa fácil. Por muito virtuosa que seja a sua criação, é o carisma inato de Trinca e sua inesgotável energia que realmente salvam e elevam “Fortunata”, sugerindo que, apesar de toda a loucura estereotipada que a rodeia, a mulher no centro deste drama é uma mulher de carne e osso merecedora da nossa atenção, respeito, admiração e aplausos.

 

Fortunata, em análise
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Movie title: Fortunata

Date published: 7 de April de 2018

Director(s): Sergio Castellitto

Actor(s): Jasmine Trinca, Stefano Accorsi, Alessandro Borghi, Edoardo Pesce, Nicole Centanni, Hanna Schygulla

Genre: Drama, 2017, 103 min

  • Cláudio Alves - 55
55

CONCLUSÃO

Uma prestação principal cheia de energia e impetuoso carisma eleva “Fortunata” acima dos clichés do seu argumento melodramático e da natureza prosaica, mas agradavelmente leve, da realização de Sergio Castelitto.

O MELHOR: Jasmine Trinca.

O PIOR: O modo como este filme desperdiça a presença da lendária Hanna Schygulla devia ser considerado uma ofensa criminal com direito a pena de prisão.

CA

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