20º Queer Lisboa | Goat, em análise

Nick Jonas e Ben Schnetzer são um par de irmãos que enfrenta o inferno das praxes das universidades americanas em Goat de Andrew Neel, um dos filmes da secção Panorama do Queer Lisboa de 2016.

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Goat começa com uma inócua festa, daquele tipo cheio de hedonismo adolescente que encontramos em inúmeras comédias americanas. Existe álcool, sexo, drogas, e raparigas dispostas a beijarem-se para apaziguarem os homens excitados que, segundo eles próprios, têm o privilégio de desfrutar de tudo isso sem a mínima consequência. Neste ambiente encontramos Brad, um jovem de dezanove anos que está na festa a convite do seu irmão mais velho, Brett, e de alguns dos seus amigos da faculdade. Relutante a participar em todas as atividades que o seu irmão está ali para apreciar, Brad acaba por sair mais cedo da festa e, no caminho para o carro, é abordado por um rapaz pouco mais velho do que ele, que lhe pede boleia para casa. Afinal, segundo o estranho, é só ir até ao fundo da rua, mas as coisas rapidamente começam a dar para o torto. O estranho vai buscar outro amigo e, ao invés de apenas irem até ao final da rua, este trio chega ao meio de um descampado mergulhado na escuridão, onde Brad é espancado e assaltado pelos outros dois homens.

Traumatizado tanto pela violência como pela sua pressuposta cobardia face aos agressores, Brad cai numa espiral de autorreflexão e necessidade de ser validado e se sentir forte. A sua solução imediata é a de ir logo para a faculdade, ao invés de tirar um ano de pausa entre o secundário e os estudos superiores. Aí, ele decide entrar na mesma fraternidade do irmão, juntamente com um grupo de outros caloiros, e, para isso, tem de sofrer as indignidades das praxes. Estes rituais de iniciação vão-se tornando cada vez mais degradantes e agressivos até que, uma tragédia acontece e se desencadeia uma série de eventos que põem em causa a relação entre os dois irmãos e a imagem de masculinidade idealizada que Brad  tem na sua mente e com a qual se está sempre a comparar internamente.

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Tal como nos EUA, aqui em Portugal, as praxes têm vindo a tornar-se em algo cada vez mais mediático e digno da atenção e escrutínio público, sendo que, no nosso país, estas práticas ainda não se encontram tão internalizadas como nas faculdades americanas, onde estas ações são consideradas por muitos como uma parte essencial e normal da vida de um jovem adulto e quase como uma etapa necessária na passagem da adolescência à vida matura. Por isto tudo, é fácil olhar para Goat como um necessário filme, que chama a atenção para o sadismo e crueldade inerentes ao que, no seu âmago, é uma série de jogos de humilhação dos mais fracos em relação aos mais fortes, sendo que, no ano a seguir, os humilhados têm o direito de se tornar nos agressores seguintes. Por muito inócuas que sejam as práticas de praxe, estas ideias de iniciação ritualista e poder de uma pessoa subjugar a outra estão sempre subjacentes, e é necessário questionarmos a sua validade e legitimidade na nossa sociedade.

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Infelizmente, Goat está longe de ser a resposta que estas questões demandam e merecem. Na verdade, na sua procura enlouquecida por demonizar as práticas das praxes, o realizador Andrew Neel acabou por construir um exercício tão desumanizante como as próprias praxes que ele se propõe a criticar. Nem é que as práticas expostas sejam extremos irrealistas, basta ler as notícias internacionais para vermos que existe bem pior, mas existe uma falta de subtileza e nuance tão corrosiva que Goat, ao invés de tratar das suas personagens como pessoas, vê-as e reduze-as a monstros e vítimas, atacantes e atacados, preto e branco.

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Talvez o filme se consiga revelar, para alguns espetadores, como um estudo de masculinidade ao invés de um estudo das praxes, mas, mesmo assim, os resultados ficam muito aquém das expetativas ou mesmo das nobres intenções dos cineastas. Chegamos a um certo ponto na narrativa em que é impossível não nos perguntarmos por que razão é que os estudantes não desistem deste horror, mas o modo como o filme esclarece isso está longe de ser tão psicologicamente sagaz como os cineastas obviamente pensam. Aliás, o modo como Neel e os argumentistas, que basearam o seu texto num livro autobiográfico de Brad Land, simplificam as realidades de uma ideia de masculinidade apoiada na violência e em venenosas ideias de validação pública, faz com que o seu produto final, ao invés de ser uma crítica aguçada, se torne tão tóxico como essas ideias em si.

O principal fator que leva a isto tudo é o tom insistentemente tortuosos e desagradável, mas muita da culpa cai nos ombros dos atores e seu tratamento de um guião cheio de contradições humanas e simplismos doentios. Os membros da fraternidade no centro de todo o enredo são todos monstros odiosos despidos de complexidade ou personalidades multifacetadas. O mais desenvolvido deles todos é um menino rico cujas principais características são um sentimento de privilégio absoluto e uma atitude elitista que o faz julgar-se no direito de se comportar como um ser superior face aos colegas. É claro que temos também Nick Jonas como Brett, cujo progressivo questionamento das praxes acaba por se tornar na mais coerente linha narrativa do filme. Mesmo assim, o ator pouco faz para tornar esse arco em algo orgânico, sendo que, quando comparamos o seu trabalho com o de Ben Schnetzer, Jonas é completamente ofuscado. Como Brad, Schnetzer tem o papel mais difícil de todo o filme, carregado de contradições comportamentais que o guião o obriga a resolver. Pela sua parte, o jovem ator que chegou a alguma fama com a sua maravilhosa prestação em Orgulho, consegue transmitir uma ideia de confusão interna, mas nem mesmo os seus melhores esforços conseguem salvar Goat.

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A piorar a situação temos, é claro, mais uma abordagem estética igual a tantas outras obras independentes americanas. Câmara ao ombro, muito tremida e com um constante uso de zooms desajeitados a la cinema verité. É uma linguagem estética feia que apenas torna Goat numa experiência ainda mais tóxica e desumana. A montagem não faz melhor, rejubilando-se no caos febris das torturas escolares e nas humilhações sucessivas, do mesmo modo que a sonoplastia parece desistir de encontrar alguma ordem e apenas se rende a apresentar massas de ruído amorfo que não é indefinido o suficiente para ser abstrato, nem primoroso o suficiente para dar qualquer noção de credível realismo.

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Em conclusão, Goat é uma obra de cinema profundamente misantrópico que, apesar de uma série de intenções militantes que merecem admiração, acaba por ser algo mais próximo do desagradável exploitation flick. Não saímos do cinema com nenhuma ideia mais profunda do que são as praxes, da psicologia venenosa que as motiva ou mesmo das noções nocivas de masculinidade que corroem a nossa cultura contemporânea, Apenas ficamos com a impressão de que vimos um filme que está próximo do torture porn, onde podemos apreciar o espetáculo de uma série de jovens atores a representarem vários níveis de trauma e sofrimento humano e degradação.

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O MELHOR: As intenções nobres dos cineastas.

O PIOR: Toda a execução cinematográfica dessas nobres intenções. O único momento do filme em que Goat parece fazer algo eficaz com a sua toxicidade ocorre quando James Franco aparece para uma pequena sequência e injeta tamanha untuosidade nojenta no filme, que, por momentos, temos algo quase satírico no seu exagero e crueldade desumana.


 

Título Original: Goat
Realizador:  Andrew Neel
Elenco: Ben Schnetzer, Nick Jonas, Gus Halper, James Franco

Queer Lisboa | Drama | 2016 | 96 min

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