MOTELx ’16 | Goksung, em análise

Erupções cutâneas, bruxarias, blasfémias, demónios, possessões, zombies e metáforas de pesca marcam presença em Goksung, uma nova obra-prima do cinema sul coreano.

goksung motelx the wailing

Por que é que existem religiões? Independentemente da veracidade e genuinidade das suas crenças e dogmas, qual é a razão pela qual a humanidade organizou e construiu as várias religiões? É óbvio que tentar responder a essa questão numa crítica de cinema com pouco mais de 1200 palavras é o fútil caminho para a loucura. No entanto, para examinar o novo épico de terror do realizador coreano Hong-jin Na, há que se levantar esta questão pois, de um modo pouco ortodoxo, Na oferece aqui a sua resposta. Segundo Goksung, ou pelo menos a experiência de o ver, os humanos edificaram a religião como modo de encarar o mal, de o racionalizar e compartimentar nas nossas mentes. No seu âmago, o ser humano precisa de ordem e, quando confrontado com algo cruelmente desordenado e cosmicamente indefinido, impomos sobre isso dogmas e regras artificiais, nem que seja para a nossa ilusão de sanidade.

Não é por acaso que o único membro do clero, de qualquer igreja, que sai ileso, em termos morais, físicos e espirituais, deste horripilante filme é quem, de um modo acidentalmente irónico, sublinha a inerente irracionalidade da instituição religiosa. Quando confrontado com a certeza devota de um polícia sobre a identidade e malvadez de um estrangeiro na sua comunidade, um padre católico questiona essa crença e acusa-a de ser apenas baseada em rumores e intuição. Ele pede provas e conclui que, sem elas, é impossível acreditar ou ter-se a certeza de algo, é necessário vermos as coisas com os nossos próprios olhos. É certo que, para completamente apreciarmos Goksung, precisamos de ter algum conhecimento básico sobre a cultura coreana e seu conglomerado de religiões e influências históricas, mas existe uma universalidade visceral na dissecação que o filme faz da nossa necessidade humana de encontrar razão e justificação para tudo, criando, por consequência, um dos mais acutilantes estudos sobre o medo primordial que temos do desconhecido e do caos.

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Seguindo esta linha de pensamento, é fácil perceber que a imensa incoerência, história convoluta, reviravoltas irracionais e indisciplina narrativa que muitos críticos têm apontado como o grande defeito de Goksung é, na verdade, uma parte essencial da sua tese. O filme começa por estabelecer uma normalidade apoiada em certos classicismos do género policial, iniciando-se com a descoberta de um crime hediondo em que um homem enlouquecido e coberto de pústulas, matou um homem e a sua mulher. Os media, exemplificando o desejo humano de ordem e racionalidade a todo o custo, culpam primeiro os cogumelos locais e depois os tónicos herbáceos consumidos pela população, mas Na nunca pede à sua audiência para acreditar nisso.

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Em simultâneo, o filme vai criando uma bizarra, mas coerente, comédia familiar focada em Jong-Goo, um investigador incompetente, e começa a polvilhar elementos sobrenaturais numa narrativa criminal que parece quase uma versão coreana de True Detective. O principal suspeito é um japonês, recentemente chegado à aldeia isolada de Goksung, e as tensões vão-se precipitando de modo violento quando parece que a filha adorada de Jong-Goo é mais uma das vítimas da pérfida magia que tem estado a ceifar as vidas e sanidades dos habitantes. Daí, a narrativa parte para um agressivo e quase niilista registo de filme sobre exorcismos antes de culminar numa série de febris reviravoltas ao estilo de Shyamalan.

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Sim, o que não falta neste filme é uma radical mistura de géneros e tonalidades. A comédia, muito espremida da incompetência profissional do protagonista e sua geral ineptidão, é de particular bizarria, mas, à medida que a história se desdobra, o que antes era motivo de riso, como o seu medo histérico e tendência para começar a berrar e chorar quando é confrontado com algo perturbador, começam a transcender o humor e a chegar a algo risível mas profundamente trágico. No centro de tudo isto está um elenco com o difícil trabalho de fazer esta confusão resultar a um nível humano e todos os atores merecem uma ovação de pé. A jovem Hwan-hee Kim, como a menina possuída, está praticamente a exigir que as pessoas se esqueçam da Reagan de O Exorcista e a declarem a ela como o novo paradigma deste subgénero do terror. Por sua vez, Jun Kunimura, como o estranho japonês, é uma colagem de vulnerabilidades humanas, opacidade misteriosa e insinuações satânicas. Mas, temos o dever de sublinhar, Do-won Kwak  no papel principal é uma verdadeira tour de force para os anais da história cinematográfica recente. Quando, no final, a audiência sai do cinema emocionalmente esgotada, quase atordoada pelo sofrimento que viu, grande parte desse impacto deve-se à mestria dessa miraculosa prestação, cheia de contrastes tonais e uma visceral humanidade que é tão inspiradora como patética.

Repare-se que não se utilizou a palavra “nobre” para caracterizar nenhuma das figuras humanas, isto porque, no mundo de Goksung, pode existir complexidade humana, mas não existe nada parecido com nobreza de espírito. Quanto muito, existe a capacidade para se sofrer e daí poder ser considerado um mártir, mas mesmo essa análise é dúbia. Veja-se, como exemplo, a sequência mais cinética e energética de todo o filme, onde dois rituais religiosos são feitos em simultâneo, um a pedido dos pais da possuída como modo de salvar a filha e outro feito pelo japonês que parece estar a tentar criar um zombie (sim, este filme também tem zombies para além de possessões, bruxarias e serial killers). A montagem é veloz, a fotografia caótica, as prestações histéricas e o som é tão ensurdecedor que é doloroso para a audiência. O caos é tal que não sabemos por quem estamos a torcer, sendo que não existem certezas nenhumas sobre os resultados ou as intenções de ambos os xamãs. Nas águas profundas do desconhecido, apenas nos resta o desconforto, o pânico e a angústia.

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Mesmo quem critica ferozmente a narrativa, o conteúdo e a estrutura de Goksung tem vindo a admirar o virtuosismo técnico em exposição e é fácil perceber porquê. Mesmo excluindo esse fabuloso espetáculo ritualista, onde a teatralidade grotesca de um e a sinistra severidade de outro ainda contribuem mais para a desorientação, esta é uma obra impecavelmente concebida e executada a nível estético. Já muito falámos da sonoridade e suas dramáticas variações de intensidade, mas também há que celebrar a fotografia, especialmente a sua captura da atmosfera tempestuosa de Goksung, onde parece que está a sempre a chover ou que se prepara mais um aguaceiro. Há algo de hermético em toda a povoação e a cenografia, especialmente nos interiores, reforça ainda mais isso, enfatizando a claustrofobia e os detalhes desconfortáveis acima de qualquer abordagem mais atraente. Até os figurinos escondem magníficas complexidades que, mesmo assim, apenas convidam ao escrutínio com muita suavidade, nunca distraindo do resto da experiência, a não ser quando as personagens se focam neles.

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Falar de todas as complexidades temáticas e formais desta obra ideologicamente densa é quase impossível, sendo que este é um filme feito para ser continuamente revisitado e redescoberto. Por exemplo, ainda nem falámos de todo o peso histórico que está contido no uso de um japonês como pressuposto vilão de um filme coreano, mas isso tem de ficar inexplorado se queremos ser minimamente sintéticos. Em conclusão, apesar de uma desmesurada ambição e abordagem bastante alienante, Goksung é um filme sublime e com um impacto emocional tão forte que parece que levámos um murro direto no estômago. As notas finais e suas imagens são um pesadelo inesquecível no melhor sentido imaginável dessas palavras.

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O MELHOR: A prestação titânica de Do-won Kwak.

O PIOR: As reviravoltas à la Shyamalan são concetualmente justificáveis mas não deixam de ser um pouco frustrantes, especialmente no clímax da narrativa.


 

Título Original: Goksung
Realizador:  Hong-jin Na
Elenco: Do-won Kwak, Jun Kunimura, Woo-hee Chun, Hwan-hee Kim  
MOTELx | Terror, Drama, Fantasia | 2016 | 156 min

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