Mahershala Ali em "Green Book"

Green Book, em análise

Mascarado de comédia-dramática, Green Book leva-nos numa viagem ao estilo de Hollywood pela América racista do início dos anos 60.

O vencedor do Golden Globe para Melhor Filme – Comédia ou Musical, Melhor Argumento e Melhor Ator Secundário chega esta semana às salas de cinema português. No entanto, colocar “Green Book” na categoria de comédia é mascará-lo. Aliás, esta não é a primeira nem será a última vez que Hollywood prefere contar os períodos mais negros da sua história através de uma lente mais colorida. Como que numa tentativa de humanizar o racismo americano de forma a ser aceite, principalmente, pelo respectivo público.

“Green Book” não trás propriamente nada de novo enquanto narrativa. O filme tem como pano de fundo a década de 60 Estados Unidos da América, onde a luta contra o valor e a volatilidade do Movimento pelos Direitos Civis imperavam. É neste contexto que dois homens são confrontados com o racismo e o perigo, que é contrabalançado pela generosidade, gentileza e humor (o véu mágico de Hollywood…). Juntos, vão desafiar suposições, ultrapassar as suas diferenças aparentemente intransponíveis e abraçar o sentido da humanidade e respeito pelo próximo. Falamos da história de Frank Anthony Vallelonga, também conhecido como Tony Lip, e Dr. Donald Shirley, interpretados por Viggo Mortensen e Mahershala Ali, respectivamente. O primeiro um Italo-Americano do bairro do Bronx, o segundo um pianista negro de renome mundial.

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A improvável amizade entre ambos nasce quando Don contrata Tony para ser seu motorista durante a tournée de concertos desde Manhattan até ao Sul dos EUA. Um pouco ao estilo de “Miss Daisy” (1989), protagonizado por Jessica Tandy e Morgan Freeman, com um toque de “Amigos Improváveis” (2011), mas com os papéis invertidos: o negro é que ‘manda’ no branco. Tendo em conta o período de segregação e as leis de Jim Crow que imperavam em 1962, poucos eram os sítios que Don não fosse recusado, humilhado ou ameaçado de violência. Desta forma, qualquer negro que viajasse fazia-se acompanhar pelo Green Book – um guia de hotéis, restaurantes, oficinas, barbearias para motoristas negros, – explicando o título da longa-metragem.

Green book cover
Capa do “The Negro Motorist Green Book” (edição de 1940)

Green Book não era o único guia do género, mas era o mais popular. Era encarado como O manual de segurança própria para todos os negros que se deslocassem pelas auto-estradas. Curioso que, no filme, Don nunca chega a manuseá-lo. O mesmo está presente em quase todas as cenas, no banco do pendura, sendo apenas consultado por Tony. Ao contrário dos restantes, Dr. Don Shirley não se revia ou convivia com os seus pares, mas também estava ciente de que não pertencia à sociedade dos brancos. Um memorável exemplo disso é a cena em que Tony pára o carro em frente a um campo de trabalhadores negros para colocar água no motor. Gradualmente os trabalhadores vão-se apercebendo de quem ocupa o banco de trás, até que Don sai com uma naturalidade quase inocente do carro e demora até interiorizar quem o observa e o que está diante dele próprio, sendo Tony a quebrar o momento para prosseguirem viagem. E é nesta dualidade que Mahershala Ali brilha em “Green Book.”

Green book
Mahershala Ali e Viggo Mortensen na cena em que observam e são observados pelos trabalhadores do campo

A postura e elegância natural de Ali encaixam perfeitamente no papel. O seu personagem obriga-o a ser sempre politicamente correcto, mesmo quando está a ser humilhado pelas próprias pessoas que lhe estão a pagar para atuar. De modo que, a sua interpretação vive das várias sequências emocionais que Ali é capaz de genuinamente transpor numa só expressão. E, como seria expectante, Tony é precisamente o oposto. Viggo Mortensen dá-nos um Italo-Americano com um sotaque e atitude características. Habituado a que as pessoas caíam na sua conversa, caso contrário habilitam-se a um desfecho sangrento, Tony Vallelonga é o elemento cómico e atenuante do filme. Tendo em conta que a realização é de Peter Farrelly, conhecido por comédias como “Doidos à Solta” e “Doidos por Mary,” não podemos dizer que o resultado final seja totalmente uma surpresa, mas provavelmente será o seu registo mais sério e maduro. Mortensen apenas peca por não aparentar os 32 anos que o seu personagem supostamente tem. Mas, para além dos seus desempenhos individuais, “Green Book” ganha pela química que Ali e Mortensen conseguiram atingir.

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Porém, Farrelly parece discordar, tendo referido no seu discurso de agradecimento dos Golden Globes que a atriz Linda Cardellini, que dá vida à mulher de Tony, Dolores, é a alma da sua mais recente longa-metragem. De um certo modo, Dolores acaba por ser o elo de ligação entre Tony e Don. É a razão pela qual a dupla de homens ganha proximidade numa primeira instância devido às cartas que Tony prometeu escrever aquando a sua partida. E, como seria de esperar, a sua literacia não é das melhores, afligindo Don que acaba por as corrigir e melhorar. As desajeitadas cartas dão assim lugar a elegantes declarações de amor, carregadas de analogias às suas várias paragens, que Dolores partilha orgulhosamente com os elementos femininos da sua família. De acordo com Nick Vallelonga, responsável pela produção e argumento da longa-metragem em conjunto com Farrelly e Brian Currie, Cardellini é de facto muito parecida com a sua mãe, até mesmo na voz, e, causalidade do destino, partilham a mesma data de aniversário. O que em conjunto com a sua química instantânea com Mortensen a tornou, de acordo com os cineastas, a escolha perfeita para o papel.

Green Book
Linda Cardellini na pele de Dolores Vallelonga, considerada a alma do filme por Peter Farrelly

Infelizmente, “Green Book” tem sido alvo de polémicas, nomeadamente o facto da família de Don Shirley não ter sido consultada, argumentando que a dinâmica entre as personagens e a caracterização do famoso pianista não estão correctas. Principalmente no que toca à sua ligação com a cultura afro-americana, uma vez que segundo consta o mesmo era, por exemplo, amigo pessoal de Martin Luther King Jr. Provavelmente, Don também saberia comer o famoso frango frito, prato tradicional da sua cultura, o qual se acabou por tornar um recorrente elemento cómico do filme. Ainda assim, podemos assumir que “Green Book” narra a versão dos acontecimentos sob a perspectiva de Tony, contada pelo seu filho mais velho, Nick Vallelonga. Segundo o mesmo, a história de “Green Book” acompanha-o desde a infância, sendo a sua adaptação ao grande ecrã um testamento à personalidade e legado do seu pai. Mas, independentemente do grau de veracidade da relação entre a dupla protagonista, é o facto de “Green Book” não deixar de pôr o dedo na ferida que nunca se tornou cicatriz.

Porém, à semelhança do que aconteceu com “Elementos Secretos” (2016), a simplicidade presente em “Green Book” também é algo facilmente ignorado. A premissa é relativamente a mesma: mascarar uma importante história verídica, deixando-a o mais fácil de digerir que possível. Ou seja, a base do filme pode ser feita para divertir, para as massas, mas o núcleo é directo e nunca deixa de relembrar o espectador das dificuldades e atrocidades enfrentadas pelos negros neste período.

Green Book
Green Book

Movie title: Green Book

Date published: 23 de January de 2019

Director(s): Peter Farrelly

Actor(s): Viggo Mortensen Mahershala Ali, Linda Cardellini, Sebastian Maniscalco, Dimiter D. Marinov, Mike Hatton , P.J. Byrne, Joe Cortese Maggie Nixon , Von Lewis

Genre: Biografia, Comédia , Drama

  • Inês Serra - 87
  • Cláudio Alves - 40
  • Marta Kong Nunes - 80
  • Rui Ribeiro - 88
  • Daniel Rodrigues - 65
  • Miguel Pontares - 70
  • Virgílio Jesus - 60
  • Catarina d'Oliveira - 65
  • José Vieira Mendes - 70
  • Maggie Silva - 60
69

CONCLUSÃO

“Green Book” pode apresentar uma narrativa mais ao gosto de Hollywood, mas não deixa de focar o racismo que os Estados Unidos da América nunca perderam.

O MELHOR: A prestação de Mahershala Ali. A química entre a dupla de protagonistas que consegue brilhar ao longo de todo o filme, muito bem acompanhada pela interpretação de Linda Cardellini. A narrativa fluída, que mantém o ritmo de “Green Book” constante.

O PIOR: Não ser propriamente uma história nova, caindo, por vezes, em clichés. A escolha de Viggo Mortensen tendo em conta a suposta idade do seu personagem.

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