Klaus em The Vampire Diaries | ©The CW/HBO Portugal

O Híbrido em Vampire Diaries (Parte II)

Antes de Klaus aparecer, já The Vampire Diaries se podia gabar de reunir em si o melhor de dois mundos, ao hibridizar fantasia e melodrama.

Ainda antes do público ou dos críticos, quem não dava nada pelo projecto eram os próprios autores. Segundo a Entertainment Weekly, num artigo comemorativo do décimo aniversário do piloto da série, Kevin Williamson passava por um período difícil de luto pela perda de alguém muito próximo. Como ajuda a atravessar o momento, Jen Breslow da CW propôs-lhe trabalhar com Julie Plec numa adaptação televisiva da tetralogia The Vampire Diaries (1991-92) de L. J. Smith, mas Williamson respondeu peremptoriamente que não. Se já quando anos antes fora convidado a fazer um filme daquela mesma obra não tinha querido nada com vampiros adolescentes, menos ainda lhe apetecia entrar agora no final da corrida para colocar o último prego no caixão. Mesmo concordando que, por muito que gostasse de vampiros, entre Twilight e True Blood a moda parecia ter chegado ao fim, ainda assim Julie Plec ficara entusiasmada com a perspectiva de realizar o seu primeiro programa de televisão e Williamson acabou por aceitar fazê-lo com ela. Plec sustenta que “ele disse não umas boas quinze vezes antes de dizer sim”, numa conversa em que lhe pediu que parasse de ler o livro, por medo de que o desmotivasse por completo: “Se continuas, vais dizer não, e eu não quero que digas não a isto. Isto pode vir a ser uma grande coisa.”[1]

Dada esta relutância inicial e não tendo nenhum dos dois apreciado particularmente o original, foi preciso encontrar um ângulo que lhes permitisse relacionarem-se afectivamente com o material. Plec descobriu no livro o drama de uma cidadezinha de província, à semelhança da Sunnydale de Buffy the Vampire Slayer, e Williamson viu uma jovem a lidar com a morte, a quem um homem morto traz de novo à vida, exactamente aquilo de que precisava na altura: “O programa foi todo ele o meu Stefan”[2]. Uma e outra coisa são aspectos muito marginais da obra e reflectem antes, na realidade, as personalidades e histórias particulares dos dois argumentistas. A versão televisiva de The Vampire Diaries não traduz tanto os temas e traços mais recorrentes da tetralogia de L. J. Smith quanto as preocupações e interesses de Williamson e Plec. Anos mais tarde, quando questionado sobre a concepção do episódio final da série, Williamson ligou-a ao que sempre vira como as intenções originais e orientadoras da mesma: “o programa foi sempre acerca de perda, dor e renascimento”. Assim sendo, o sacrifício de Stefan por Damon e a reunião final dos dois irmãos concluíam adequadamente uma narrativa que desde o princípio se desejara “épica” e “fora sempre sobre a família”[3].

The Vampire Diaries | Enterro de Jenna e John

A série reflecte ainda a resposta que estas personalidades deram ao desafio oferecido pelas circunstâncias da adaptação num contexto de saturação do género. A dupla sabia que a história de uma humana a apaixonar-se por um vampiro não era nova, que por mais que desejassem criar um universo, personagens e dinâmica só deles, no fim de contas, tratava-se sempre de “um triângulo amoroso com um vampiro de cerca de mais de cem anos e uma bonita rapariga adolescente”, havendo, logo à partida, inúmeros obstáculos a superar para “fazê-lo sentir como único”[4]. Para diferenciar a série do Twilight sem cair acidentalmente numa repetição de Buffy the Vampire Slayer, fora preciso “começar imediatamente a tomar decisões independentes do material de origem para poder construir um mundo ao qual se sentissem ligados e no qual acreditassem, com um potencial de várias estradas diferentes a percorrer, em termos de narrativa”[5]. Assim, embora a adaptação tenha sido sempre conduzida pelo intuito de “honrar o tom dos livros e os temas principais” e “a história de amor, o romance, a traição”, Williamson reconhecia que “em última instância, iremos aonde a nossa história nos levar”[6].

É ainda das personalidades de Williamson e Plec, dos seus interesses, experiência passada e intenções particulares por altura da adaptação, que deriva a hibridez de género característica da série. Kevin Williamson traz no seu currículo a autoria do melodrama juvenil Dawson’s Creek, para cuja escrita Julie Plec começou a contribuir a partir da segunda temporada, e a escrita de quase todos os argumentos da série de filmes Scream, de Wes Craven, bem como de I Know What You Did Last Summer, de Jim Gillespie (1997). Esta experiência com géneros muito diferentes, aliada ao desafio representado pelas extensas temporadas de vinte e dois episódios, levou à tentativa de criar “um equilíbrio perfeito de emoção, carácter e reviravoltas do enredo, de modo a que as pessoas voltassem continuamente à procura de mais.”[7] Uma entrevista de Williamson na edição de 2011 da Comic-Con de San Diego revela quão consciente o produtor estava desta natureza indefinível de The Vampire Diaries e quão deliberadamente balanceava os elementos dos diferentes géneros, para colmatar as deficiências próprias de cada um: “Esta espécie de narração – chamo-lhe híbrida – é parte juvenil, parte drama, parte família, parte vampiro, parte terror. […] Queria trazer essa adrenalina a uma telenovela de terror melodramática. Não queria que fosse lenta, gótica e entediante. Queria que estivesse viva, pulsando a cada passo do caminho, quer fosse por meio da acção, de grandes emoções ou de um amor épico.”[8]

The Vampire Diaries | Williamson sobre a adaptação

É neste fino contrabalanço da emoção vinda do romance, da construção de personagens e das relações entre elas vinda do melodrama, da acção épica vinda do terror e da fantasia, do humor vindo da paródia de género que reside muito do valor da série, particularmente nas primeiras três temporadas. Aliás, pode-se alegar que um certo falhanço das temporadas mais tardias vem de um desequilíbrio interno destes elementos, com cada uma delas a acentuar um dos veios em detrimento dos restantes. A sexta temporada, oscilando demasiado para o melodrama, poderia ter ganho com um pouco mais de acção. Centrado na luta pela liderança na Assembleia dos Gemini, o alvo da malevolência de Kai era lateral às personagens principais e os seus planos mais comezinhos do que os de vilões como Klaus ou os Travellers. Ainda assim, o lado jocoso da sua sociopatia supria a recém-adquirida seriedade de Damon, convertido em homem de família. Já as restantes duas temporadas teriam beneficiado imensamente de uma qualquer forma de alívio cómico, com a sua pesada matéria gótica e mitológica de perdição infernal.

A fórmula de sucesso da série é, então, a fusão dos grandes géneros da fantasia e do melodrama. O uso do gótico, como subgénero da fantasia, permite repropor certas questões fundamentais e respostas mais ou menos intemporais acerca da natureza humana que, segundo Kazuo Ishiguro num artigo sobre a presença de clones em Never Let Me Go, a narrativa mais contemporânea foi tornando obsoletas ou pelo menos embaraçosas.

Paradoxalmente, descobri que ter clones como personagens centrais tornava fácil aludir a algumas das questões mais antigas na literatura; questões que se tornou recentemente embaraçoso levantar na ficção: “O que significa ser humano?”; “O que é a alma?”; “Para que fim fomos criados, e deveríamos tentar realizá-lo?” Em livros de eras passadas – em Dostoievsky ou Tolstoi, por exemplo – as personagens debateriam estes assuntos ao longo de vinte páginas e ninguém se queixaria. Mas no nosso tempo presente, os romancistas têm lutado por encontrar um vocabulário apropriado – um tom apropriado, talvez – para discutir estas questões sem soarem pomposos ou arcaicos. A introdução de clones – ou robots, ou super-computadores, suponho – como personagens principais pode reavivar estas questões para leitores modernos de uma forma natural e económica.[9]

É com a dimensão gótica que as temáticas do humano, do mal e da redenção da alma podem ser levantadas e discutidas sem subterfúgios, tacitamente aceites como fazendo parte das regras do jogo. A aproximação do gótico ao campo do terror permite a introdução das emoções fortes associadas ao perigo, à acção e ao heroísmo que oferecem ao romance no centro da obra um contexto de aventura, tornando-o épico, enquanto o gore contrabalança, com a sua violência, o adocicado do romance. É este tom épico que a banda sonora pop, sob a supervisão de Chris Mollere, realça e intensifica. Com escolhas que vão desde o rock alternativo mais disseminado dos R.E.M., Yeah Yeah Yeahs, TV On The Radio, Phoenix, The Kills, Vampire Weekend, Arctic Monkeys, Sigur Ròs ou M83 até ao pop de Florence + The Machine, Bastille, Imagine Dragons, The Fray, Snow Patrol, Icona Pop, Rihanna, Birdy, Lorde ou Lykke Li, a maioria das canções é contemporânea à época em que a série foi feita e se passa, contribuindo para a consistência pop deste objecto ao situá-lo no tempo mas sem o datar. A justeza milimétrica das letras aos eventos e emoções da narrativa, rima com o argumento, suplementando-o muitas vezes, numa lógica de videoclipe que concorre para a visão épica dos produtores.

Sigur Rós, “Dauðalogn” | Final da temporada 3

A grande inspiração foi contudo recorrer ao melodrama como forma de trazer à realidade toda esta fantasia sobrenatural, reinserindo a história no quotidiano familiar de uma pequena cidade do sul norte-americano e temperando a magnitude épica com o intimismo melodramático. O episódio “The Descent”, na segunda temporada, assistiu ao uso da doença e morte de Rose para desenterrar e oferecer um vislumbre significativo do âmago de Damon, “tornando evidente que este programa não era só sangue, colmilhos e vampiros cismadores” mas “havia nele uma humanidade profunda”[10]. Estas criaturas sobrenaturais e os seus amigos humanos “são jovens reais num mundo real”, pelo que era preciso que tudo o que se fizesse, mesmo a magia, “emanasse do ponto de vista do mundo real”, “voltando a ligar tudo ao amor, à família, à perda, à lealdade, à amizade”, como forma de “o manter tonalmente sob controlo”.

É também o melodrama, com a sua sinceridade e franqueza emotiva, que mantém em xeque a dimensão humorística de autoparódia, evitando o distanciamento irónico e a desconstrução que implica. Plec conta como o mais difícil ao início para os dois produtores era não se deixarem levar pelos respectivos estilos: “O estilo de escrita habitual dele de Dawson’s e de Scream é muito irreverente, muito consciente da cultura pop, e o meu é muito enérgico, atrevido, muito Mean Girls, John Hughesco.” Era preciso conterem as suas vozes naturais para não terem “todas as personagens a falar nessa espécie de tom pastilha-elástica, autoconsciente, pisca-o-olho” e conseguirem “ser diferentes em tom da Buffy”[11]. Habilmente entretecido no enredo pelos argumentistas e convincentemente interpretado pelo elenco de atores (não por acaso é este o valor da série mais invocado pelos críticos), o veio de melodrama contrabalança a acção épica, a ficção sobrenatural e a paródia de género ao redimensionar a escala, aproximar do quotidiano e focar a atenção na trama de relações pessoais e no drama moral em jogo. Traz à narrativa o conteúdo humano privado e genuíno que dá substância e poder de comoção ao tema gótico da redenção.

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Notas

[1] Andy Swift, “Vampire Diaries’ Biggest Twists Revisited (and Explained)”, TV Line, 10 de Setembro de 2019.

[2] Samantha Highfill, “Today will be different: An oral history of The Vampire Diaries pilot”, Entertainment Weekly, 9 de Setembro de 2019.

[3] Dominic Patten, “’Vampire Diaries’ Eps on If Tonight’s Finale Is Really the End, What’s Next and ‘Buffy’”, Deadline, 10 de Março de 2017.

[4] Lindsay MacDonald, “’The Vampire Diaries’ Stars Look Back at Filming the Pilot for the Show’s 10th Anniversary”, TV Guide, 10 de Setembro de 2019.

[5] George Bragdon, “Dishing With ‘The Vampire Diaries’ Executive Producer Julie Plec”, Forever Young Adult, 6 de Junho de 2012.

[6] Carina MacKenzie, “Kevin Williamson talks about the future of ‘The Vampire Diaries’ and why high school is a ‘horror movie’”, Los Angeles Times, 29 de Outubro de 2009.

[7] Dominic Patten, “’Vampire Diaries’ Eps on If Tonight’s Finale Is Really the End, What’s Next and ‘Buffy’”, Deadline, 10 de Março de 2017.

[8] Lacey Rose, “Comic-Con 2011: Kevin Williamson on John Carpenter, ‘True Blood’ and How ‘Dark Shadows’ Influenced ‘The Vampire Diaries’ (Q&A)”, The Hollywood Reporter, 14 de Julho de 2011.

[9] Kazuo Ishiguro, “Future Imperfect: Kazuo Ishiguro on how a radio discussion helped fill in the missing pieces of Never Let Me Go”, The Guardian, 25 de Março de 2006.

[10] Leanne Aguilera, “Creator Julie Plec on the Scene That Proved ‘Vampire Diaries’ Was More Than ‘blood, Fangs & Brooding’”, ET, 6 de Fevereiro de 2015.

[11] George Bragdon, “Dishing With ‘The Vampire Diaries’ Executive Producer Julie Plec”, Forever Young Adult, 6 de Junho de 2012.

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