Hitchcock a Melhor Sobremesa do Almoço de Natal?
Hitchcock no Dia de Natal? Sim, porque a maioria das pessoas recicla o almoço de Natal: peru seco, ‘roupa velha de bacalhau’, rabanadas fatigadas e depois fica aquele silêncio pesado de sofá depois da sobremesa. Este ano, porém, há uma alternativa: sair de casa a seguir ao almoço e ir ao Cinema Nimas ver um filme de Alfred Hitchcock.
Trocar o peru reaquecido e a ‘roupa velha’ de bacalhau por suspense puro de Alfred Hitchcock no grande ecrã é o verdadeiro milagre da época de Natal, muito mais saudável para o fígado, para o coração e para a sanidade mental. Por isso, a partir de 25 de Dezembro, o Cinema Medeia Nimas recebe uma das maiores retrospetivas de Alfred Hitchcock alguma vez apresentadas em Portugal: 37 filmes, cinco décadas de cinema, uma obra inteira para ser vista como deve ser, em sala escura, com pessoas ao lado, sem pausa para ir buscar vinho quente ou o chapinho à cozinha, que bem apetece nestes dias frios de inverno. Não é um plano B para quem “não gosta muito do Natal”. É, na verdade, uma celebração paralela para os cinéfilos e para todos aqueles que querem aquecer a alma e o espírito com os filmes de um dos maiores Mestres da História do Cinema. Chama-se a isto um Natal alternativo. Menos anjos, mais facas. Menos presépio, mais vertigem, mais culpa, mais desejo. Mas tudo sem pecado, porque tudo se passa no grande ecrã.

O verdadeiro espírito natalício: medo, culpa e desejo
Hitchcock sempre soube uma coisa que muita gente ainda anda a aprender: a tensão não se resolve, gere-se. E ninguém geriu melhor o desconforto humano do que este inglês de ar bonacheirão que transformou o suspense numa língua universal. Enquanto o Natal insiste em vender reconciliações instantâneas, Hitchcock lembra-nos que o passado nunca passa, que o desejo raramente é inocente e que a normalidade, na maioria das vezes, é apenas uma máscara mal colada. Não há melhor antídoto para o açúcar e a gula em excesso da época do que um filme onde sabemos que a bomba está debaixo da mesa e ficamos sentados à espera.

Arte = indústria (e o peru que se lixe)
Hitchcock defendia, sem pudor, que um filme só era artisticamente bem-sucedido se fosse também um sucesso de público. Não havia ali romantismos de miséria nem discursos sobre a “incompreensão das massas”. Se algo falhava, a culpa era dele: um actor mal escolhido, uma revelação feita cedo demais, um truque visual mal afinado. É por isso que os seus filmes continuam vivos. Porque nunca foram feitos para agradar a uma elite cinéfila fechada em si mesma, mas para manipular emoções reais em espectadores reais. Ver Hitchcock hoje — sobretudo em sala — é perceber como se pode ser popular sem ser simplista, ousado sem ser hermético e profundamente autoral sem concessões. Uma lição que continua, por vezes, a fazer falta no cinema contemporâneo e que muitos cineastas ainda deviam aprender com urgência.

Uma retrospetiva como já não se fazem
Esta não é uma colectânea de “maiores êxitos” de Hitchcock. É uma obra completa em movimento, da fase britânica ao apogeu americano, dos títulos mais celebrados aos filmes menos vistos, mas absolutamente essenciais para perceber o seu método. Começa com “Chantagem” (1929), filme de transição entre o mudo e o sonoro, passa pelos anos 30 britânicos (“O Homem Que Sabia Demasiado”, “39 Degraus”, “Desaparecida” e outros) cheios de ironia política, instala-se em Hollywood com “Rebecca” (1940) — Óscares de Melhor Filme e Melhor Fotografia no ano seguinte —, ao qual se seguem, nessa década, “Sabotagem”, “Casa Encantada”, “Sob o Signo de Capricórnio”, “A Corda”, entre outros; e explode nos anos 50 e 60 com alguns dos objectos mais perturbadores alguma vez produzidos pelo cinema clássico: “O Desconhecido do Norte Expresso”, “A Mulher Que Viveu Duas Vezes”, “Psico”, “Os Pássaros”, “Chamada para a Morte”, “Janela Indiscreta”, “O Homem Que Sabia Demais”, “Intriga Internacional”. Termina com o sarcasmo crepuscular dos últimos filmes, numa obra que se prolonga de forma mais espaçada na década de 70 e que culmina com “Intriga Em Família” (1976). E tudo em cópias digitais restauradas. Tudo no grande ecrã. Tudo como deve ser.
VÊ TRAILER DE “O MEU NOME É ALFRED HITCHCOCK”
Porque é que isto importa agora (e não só aos cinéfilos)
Porque Hitchcock não é um museu. É um manual de sobrevivência emocional. Num mundo saturado de imagens, spoilers, algoritmos e narrativas explicadas até à exaustão, Hitchcock lembra-nos que ver é um acto moral, que a câmara pensa e que o espectador é cúmplice e, por isso, nunca inocente. Os realizadores que vieram depois sabem-no bem. Dos realizadores franceses da Nouvelle Vague e dos Cahiers du Cinéma (Truffaut, Chabrol, Rohmer, Rivette, Godard) à Nova Hollywood, de Spielberg a Scorsese, e depois de De Palma a Fincher, todos aprenderam aqui. Mesmo quando o tentaram negar. E ainda hoje, filmes contemporâneos continuam a dialogar com este legado cinematográfico. Hitchcock não envelheceu. O mundo é que se tornou cada vez mais hitchcockiano. Porém para complementar a Retrospectiva recomendo ver documentário “O Meu Nome é Alfred Hitchcock” (2022), realizado por Mark Cousins, que está disponível na Filmin Portugal, Prime Video ou Apple TV.

Trocar o sofá pelo suspense: um conselho médico
Contudo, depois do almoço de Natal, há três hipóteses: dormir, discutir a política da actualidade, os debates e os candidatos às eleições presidenciais, ver a tarde de Circo de Natal, fazer um passeio higiénico ou ir ao cinema ver um filme de Hitchcock. A terceira é claramente a mais segura para toda a época natalícia e para a ressaca do mês de Janeiro. Não engorda. Não dá azia. E ainda afina o olhar. Além disso, a retrospectiva prolonga-se de facto pelo mês todo de Janeiro, portanto ainda dá para comer umas fatias de bolo-rei e cantar as Janeiras à boa maneira hitchcockiana. Como o próprio Alfred Hitchcock dizia, o cinema não é uma “fatia de vida”. É uma fatia de bolo. E a Medeia Filmes pôs na mesa 37 fatias de um dos melhores bolos da história do cinema. Sirvam-se.
Informação essencial: Grande Retrospectiva Alfred Hitchcock
Cinema Medeia Nimas (Lisboa) A partir de 25 de Dezembro de 2025 | 37 filmes | Cópias digitais restauradas. Horários em: medeiacinemas.com
JVM

