15ª Festa do Cinema Italiano | Il buco in testa, em análise

Realizado por Antonio Capuano, “Il buco in testa” é um filme onde a História política e psicologia individual se intersectam. Teresa Saponangelo venceu o prémio para Melhor Atriz do Sindicato de Jornalistas Italianos pela obra que agora chega a Portugal graças à Festa do Cinema Italiano.

Apelidam-nos de “os anos de chumbo,” um período turbulento na História Italiana. Entre o final da década de 60 e o fim dos anos 80, uma série de movimentos de extrema esquerda e extrema direita abalaram a nação com uma variedade de manifestações e até ataques terroristas. Nascido no berço do Maio de 68, este período transborda idealismo e crispação, sonhos para um futuro melhor e violência revolucionária. Já passados tantos anos, os cismas sociopolíticos dessa época ainda reverberam pela sociedade italiana e fascinam os seus cineastas nacionais.

No caso de Antonio Capuano e seu “Il buco in testa,” o evento de maior interesse aconteceu em Maio de 1977. A 12 de Maio desse ano, Giorgiana Mais, com apenas dezassete anos, foi morta durante um protesto pacifico em Roma. Seu triste fado despoletou a raiva entre os radicais políticos que viram suas vidas ameaçadas apesar de abordagens anti violência. Enraivecidos, os estudantes do Movimento 1977 dispersam. No cimo da via De Amicis, um grupo particular começa a pegar fogo a carros como forma de protesto.

il buco in testa critica festa do cinema italiano
© Festa do Cinema Italiano

Um magote da polícia está perto e, no fulgor febril do momento, Mario Ferrandi, então com 21 anos, dispara na direção dos agentes. Apesar de não apontar para ninguém em certo, a sua bala chega a Antonio Custrà, acertando-lhe na cabeça. A morte é rápida para o vice-almirante de 25 anos, ceifando a vida a esse jovem de origens rurais cuja mulher grávida o esperava em casa. A filha ainda por nascer jamais conhecerá seu pai. No que se refere ao atirador, Ferrandi fugiu à justiça até 1981, quando foi preso em Londres.

Cumprida a sentença, ele saiu em liberdade já homem velho, atormentado pela culpa. Contudo, não foi só o tribunal que lhe exigiu justiça, pois a filha sem pai também o quis confrontar. Há cerca de uma década, Maria S. decidiu falar com Ferrandi, revisitando o local do comício onde o patriarca perdeu a vida. Seu diálogo serviu de inspiração a Capuano que, neste filme, tenta imaginar o encontro, o modo como cada figura sentiu as forças da História, e como o acontecimento de 77 influenciou a vida destas pessoas, décadas após o sangue banhar a via De Amicis.

Não se trata de um docudrama acorrentado à crueza dos factos, mas sim uma exploração cinematográfica de temas que ecoam tanto pela figura individual como pela coletividade nacional. A fita é dedicada aos Irmãos Lumière, assinalando quanto o realizador assume o seu trabalho como uma investigação que tanto incide sobre o trauma humano como sobre a capacidade do cinema para retratar tais assuntos. O jogo audiovisual revela-se logo no primeiro plano, quando a imagem escura de uma estação ferroviária se inflama de cor, um comboio prateado tornando-se rubro perante a vista do espetador.

A invenção não se fica por aí, estendendo-se até ao modo como as personagens se apresentam perante a câmara. Apesar de nos aparecer na multidão, perdida num núcleo popular, a protagonista depressa se separa e, na intimidade do quarto vazio, confronta-nos. A barreira entre facto e ficção, audiência e personagem esmorece até desabar. A atriz Teresa Saponangelo fala-nos diretamente, introduzindo os seus dados, a sua história. Trata-se de um mecanismo arriscado que, como toda a fita, explora as interseções entre o artifício inerente do cinema e sua capacidade para documentar a realidade tal como ela é.

O sonho é outro mecanismo curioso. A primeira vez que o vislumbramos é numa mescla de preto-e-branco e cor, tudo em monocroma carregado excetuando um par de sapatos vermelhos como que pintados a guache por cima de celuloide. Mais tarde, a memória sonhada e seu preto-e-branco reentram o jogo do filme num momento em que as personagens discutem eventos passados. Em certa medida, é como se a conversa os transportasse para o que aconteceu outrora. Não é uma viagem temporal, mas uma transformação nas texturas da imagem.

Indo além da forma e perscrutando o texto, desvendamos um filme que tenta comunicar o transtorno da perda através de uma cronologia estilhaçada. Não só vemos o encontro entre Maria e Mario Ferrandi, como viajamos para o quotidiano napolitano da mulher, seu emprego num instituto técnico e suas relações complicadas. Vemos como a mãe se deixou consumir pelo luto, tão destroçada que, hoje em dia, já nem fala, somente chorando o silêncio dos seus dias. Testemunhamos a atração entre Maria e um colega volátil, como as cicatrizes do ressentimento afetam sua capacidade para se aproximar, para comungar na companhia dos outros.

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© Festa do Cinema Italiano

Na verdade, esse retrato da Nápoles contemporânea domina a duração da trama, apesar de o drama principal de “Il buco in testa” estar no diálogo histórico. A montagem tenta conjugar os fios narrativos, usando o formalismo cinematográfico para esculpir pontes entre os dois. Nessa vertente, confessamos que a criatividade de Capuano quiçá o traia. Um exercício mais simples poderia ter sido mais fiado na reflexão política, mais esclarecedor como um estudo da personagem. Mesmo assim, admiramos o filme na sua forma final, especialmente o trabalho de Saponangelo no papel principal. Sua ferocidade eletriza o ecrã, expondo vulnerabilidades ensanguentadas, as contradições da psique e a dor que lhe é eterna companheira.

Il buco in testa, em análise
il buco in testa critica festa do cinema italiano

Movie title: Il buco in testa

Date published: 8 de April de 2022

Director(s): Antonio Capuano

Actor(s): Teresa Saponangelo, Tommaso Ragno, Francesco Di Leva, Vincenzo Modica, Gea Martire, Anita Zagaria, Daria D'Antonio, Bruna Rossi, Alberto Hoiss, Vincenzo Ruggiero, Marco Risiglione, Angelo Imperatore

Genre: Drama, 2020, 95 min

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO:

Memórias e sonhos, um corpo na praia e retratos do patriarca que nos olham das paredes, quais espectros pintados – “Il buco in testa” é um filme sobre assombrações da memória e sobre as dificuldades com que o cinema retrata as complexidades da História. Antonio Capuano afirma-se enquanto autor importante no paradigma do cinema Italiano moderno. Estamos muito curiosos para ver o que o cineasta faz a seguir.

O MELHOR: Com uma pistola tatuada no peito e a atitude de um anjo vingativo, Teresa Saponangelo é uma estrondosa estrela.

O PIOR: A política do filme é complicada e a estrutura dispersa do guião não ajuda a esclarecer sua perspetiva. Será que “Il buco in testa” apoia o desejo de vingança, a filha do polícia contra o manifestante que lutava pelo proletariado? Será que procura a ambivalência? É difícil dizer com confiança tal é a confusão textual e o gesto da montagem.

CA

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