13º IndieLisboa | The Witch, em análise
Partindo de textos seiscentistas, Robert Eggers criou em The Witch, um aterrorizador retrato de uma família puritana que se vê vitimada pela desumanidade da sua fé e por malévolas forças satânicas.
Apesar de ser normalmente denominado simplesmente como The Witch, o filme que ontem agraciou o Cinema São Jorge e que, já há mais de um ano, alcançou geral adoração crítica em Sundance não se apresenta com esse título. Mais especificamente, o título que aparece escrito no início desta obra de Robert Eggers, denomina o filme como The VVitch: A New England Folktale. Tal diferenciação é deveras importante, pois este é um filme enraizado nas crenças e no folclore específico das comunidades puritanos de New England nas primeiras décadas do século XVII, e, tal como se pode verificar na escrita arcaica de bruxa, a própria linguagem do filme remonta a esse distante passado.
Hoje em dia, quando olhamos para as horrendas caças às bruxas que se deflagraram pelo mundo ocidental, especialmente as colónias americanas, fazemo-lo com uma perspetiva analítica e claramente contemporânea. Projetamos nestes eventos o conhecimento crítico de como histeria popular leva a fanatismo e injustiça institucional. Podemos neles ver uma apoteose maligna do sexismo inerente à sociedade da época e sua mentalidade rigidamente religiosa. Nas suas vítimas acabamos por encontrar exemplos de psicoses e problemas mentais então tidos como prova da presença do Demo. Ou então, podemos ainda explorar tais horrores a partir de um ponto de vista pruriente e sanguinário típico de muito do nosso entretenimento contemporâneo. Um dos aspetos mais fantásticos de The Witch é o modo como a sua história renega qualquer uma dessas abordagens e mentalidades do nosso tempo, apesentando um drama que poderia ter sido escrito pelos puritanos que, há séculos, habitavam as inóspitas paisagens da América selvagem e acreditavam piamente nas suas crenças cristãs, vendo o mundo em seu redor como uma constante ameaça cheia de males demonicos e ímpias tentações.
Lê Também: Crimson Peak – A Colina Vermelha | Mini-Crítica
Retirando muito do seu diálogo de textos da época e construindo um enredo que raramente questiona a veracidade de tais horrores sobrenaturais, Eggers concebeu assim uma narrativa que parece ter emergido, já formada, de um outro tempo, um tempo que é completamente alienígena para os nossos olhares modernos. Com uma espetacular procura por autenticidade histórica a respeito de tudo, desde o espaço, às roupas, à luz ou ao próprio modo das pessoas falarem, o realizador construiu assim um retrato exímio e visceral desse mundo que nos é distante e estranho, nunca o criando a partir de um conjunto de valores demasiado preso a valores atuais.
Especificamente, essa narrativa e mundo são apresentados sob a forma de uma trama que se centra numa família expulsa de uma colónia devido à sua prática religiosa desmesuradamente rígida. Ostracizados da sua comunidade puritana, durante logo os primeiros cinco minutos do filme, observamos como um território não habitado e fronteirado por uma negra floresta se torna a nova casa desta família, composta por um pai, mãe, uma jovem filha adolescente, um rapaz a chegar aos primeiros anos de puberdade, dois gémeos, um rapaz e uma rapariga, ainda crianças e um bebé. Um dia, como que num piscar de olhos, o mais novo membro da família desaparece, e tudo começa a resvalar numa espiral de ensandecida fúria religiosa e intervenção satânica, onde acusações de bruxaria se começam a manifestar dentro do tempestuoso e frágil seio familiar. Um a um, os membros da família vão perdendo a razão, e uma tapeçaria de traições, ressentimentos, mentiras e hipocrisias torna-se na arma de eleição que usam uns contra os outros, com a carnificina emocional, espiritual e física a apenas aumentar, até ao clímax final.
Se não fosse o seu elemento sobrenatural este poderia ser mesmo uma rara obra-prima de cinema sobre as tensões dentro de uma família, uma versão de época de tal história, Não que os elementos demónicos detraiam do impacto do sublime estudo de personagens e costumes que Eggers captura, pois essa magia satânica é uma perfeita extensão da mentalidade que reina na família, onde o mal está em todo o lado. Acusar o filme de apoiar e celebrar tal perspetiva, seria, no entanto erróneo.
Há que se salientar como, apesar de retratar uma família, uma cultura, um pensamento e um mundo intrinsecamente seiscentista, Robert Eggers foge a quaisquer elementos puritanos na sua filmagem destes eventos. A nível formal, isto não poderia ser mais óbvio com todo o filme a ser uma espécie de tratado magistral em mecanismos do cinema de terror. Aliás, a formalidade de The Witch é tão obsessiva que esta é quase uma peça académica, explorando de modo claro, como a insinuação de algo horrendo é mais desconcertante que esse mesmo horror. A música é de particular destaque neste aspeto, constantemente insinuando males apocalípticos mesmo quando apenas vislumbramos cenas do quotidiano e, por consequência, criando, com grande ajuda da soberba fotografia, uma constante sensação que este mundo tem algo de errado, podre e perigoso no seu âmago.
Lê Ainda: 8 1/2 Festa do Cinema Italiano: Sangue del mio sangue, em análise
Para além desses aspetos mais estéticos e formais, há ainda o modo como a perspetiva de Eggers cria algo semelhante a um revisionismo sob um documento da época. Enquanto o texto e o trabalho do elenco podem apontar para o real perigo e veracidade dos medos das suas personagens, a câmara e, por conseguinte, a audiência, estão sempre prontas para escrutinar a superfície das interações desta unidade familiar e nelas encontrar marcas de uma sociedade com injustiças e preconceitos enraizados, de tal modo que apenas podem culminar em tragédia. O filme, como um todo, pode fugir ao tipo de projeção política e ideológica de obras como The Crucible, mas é certo que o material é apresentado com suficiente complexidade que quem assim o desejar poderá nele desenterrar tais conclusões.
Com tudo isto em conta, há que se acrescentar como, ao criar o derradeiro filme de terror puritano, Eggers acrescentou a esta história um elemento de aterradora sagacidade e agnóstica intencionalidade. É certo que os medos destas pessoas são justificados e existe Satã na terra, mas, como a direção do realizador sugere, Deus parece estar ausente, não existir ou há muito ter morrido. Por muito que se parle de entidades divinas, seus castigos e benesses, no final, esta família apenas se envenena a si mesma com a sua fé, como que se oferecendo aos males satânicos de braços abertos, numa trágica reviravolta que tem tanto de aterrador como de irónico.
Em conclusão, como documento histórico de um tempo perdido na memória e de uma cultura há muito afastada pela evolução das mentalidades, The Witch é imperdível. Como exercício puramente formalista de como telegrafar horror e desconcertante desordem ideológica, é soberbo. Como retrato familiar e humano, é surpreendentemente astuto, especialmente devido ao seu esplêndido elenco. Que é tudo isto, e também consegue encontrar espaço para se exibir como um frio e austero pesadelo espiritual, é quase um milagre digno de uma adoração semelhante à que é exibida, de modo tão devastador, pelas figuras que protagonizam e vivem esta hipnótica tragédia sobrenatural.
O MELHOR: O modo como captura a especificidade de uma cultura totalmente centrada em valores religiosos, e cuja vivência e mentalidades nos são tão distantes e irreais como as sanguinárias bruxarias que vão aparecendo pelo filme em tableaux de horrenda visceralidade, malévola natureza animal ou pura e ímpia magia.
O PIOR: Os derradeiros cinco minutos de The Witch poderão, para muitas audiências, parecer desnecessários e facilmente cortados do filme, e, há ainda que se apontar, como, em momentos esporádicos, Eggars parece perder qualquer subtileza ou nuance, como quando o pai é soterrado pelo símbolo do seu orgulho e hubris patriarcal.
Título Original: The Witch
Realizador: Robert Eggers
Elenco: Anya Taylor-Joy, Ralph Ineson, Kate Dickie
Drama, Terror, Mistério | 2015 | 92 min
[starreviewmulti id=18 tpl=20 style=’oxygen_gif’ average_stars=’oxygen_gif’]
CA