IndieLisboa | Sinónimos

16º IndieLisboa | Sinónimos, em análise

Em “Sinónimos”, o filme que lhe valeu o Urso de Ouro da Berlinale, o realizador Nadav Lapid conta uma história semiautobiográfica sobre um emigrante israelita a tentar assimilar-se a uma nova pátria, França. Antes de estrear comercialmente em Portugal, esta peculiar obra foi o filme de encerramento do IndieLisboa.

Um homem caminha pelas ruas de Paris. Uma câmara segue-o e às suas passadas largas, tremendo em todas as direções e cambaleando de tal modo que espectadores com estômagos mais fracos porventura ficarão enjoados. A cavalgada parisiense termina e a câmara estabiliza-se com a chegada a um edifício antigo e refinado, cheio de apartamentos espaçosos com painéis de madeira branca e pavimento envernizado. Recolhendo uma chave misteriosamente deixada por baixo da carpete, o nosso protagonista resguarda-se no interior de uma dessas cavernas domésticas. O espaço está completamente vazio e as janelas abertas deixam entrar o ar gélido do inverno francês. Yoav é o nome deste viajante, um israelita em desesperada tentativa de cortar relações com tudo e todos os que o acorrentam à nação que o viu nascer.

Enquanto espectadores nunca sabemos que situações levaram Yoav a tomar abrigo no apartamento, ou porque razão ele tem outro apartamento muito mais pequeno e esquálido do outro lado do Sena. Tais incompreensões são muitas e muito variadas em “Sinónimos”. Note-se, por exemplo, como um assaltante que não é visto ou ouvido consegue entrar no apartamento enquanto Yoav se masturba na banheira deixando o imigrante sem posses para além do piercing que lhe adorna os lábios. Enregelado, a vítima de roubo deita-se na banheira depois de ninguém responder aos seus pedidos de auxílio. Ele prepara-se para morrer de hipotermia na banheira, mas nem sequer fecha as janelas por onde entra o ar frio da rua.

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O nacionalismo é uma doença.

De manhã, Yoav é encontrado, nu, gelado, inconsciente e escultórico, por um casal seu vizinho. Emile e Caroline sãos os nomes deles, que parecem transplantados de uma paródia do cinema francês e suas mais irritantes fórmulas e pretensiosismos. Ele é um escritor frustrado que bebe para despertar a musa, sua figura é elegante e sua sexualidade ambígua. Ela toca oboé e é impossivelmente chique, sensual, não tem problemas em trair o namorado e está sempre equipada com uma postura de aborrecimento patrício. São burgueses endinheirados que atuam como rebeldes intelectuais, cegos ao seu privilégio a não ser quando, de cigarro na mão, podem fazer uma piada que se veste como autocrítica, mas cheira a arrogância.

De novo, sem explicações ou qualquer tipo de relação causal ou credível motivações, o casal auxilia o esbelto israelita, dão-lhe dinheiro, vestem-no com um casaco amarelo mostarda e até lhe dão um telemóvel. Em troca, os dois parecem apenas pedir a sua presença nas vidas deles e uma fonte de histórias rebuscadas em que, pelo menos, Caroline tem dificuldade em acreditar. Yoav, por seu lado, continua a sua missão de se tornar francês, o que aparentemente passa por se recusar a falar em hebraico, comprar um dicionário de bolso e andar pelas ruas de Paris num constante vómito verbal de sinónimos e definições. Contudo, quanto mais ele se tenta distanciar da identidade israelita, mais essa identidade se parece agarrar ele.

Em desespero, ele encontra trabalho na embaixada de Israel e as únicas pessoas que ele parece conhecer para além de Emile e Caroline são dois agentes de segurança israelitas que, em si, personificam os mais tóxicos ideais de hipermasculinidade que o nacionalismo israelita promove. Mesmo depois de perder o trabalho na embaixada e ser forçado a posar nu para ganhar dinheiro, Yoav é sempre assombrado por Israel. Nesse caso, é um fotógrafo meio pervertido que lhe paga para ele se penetrar com os dedos enquanto grita vitupérios em hebraico. Lapid retrata estas dinâmicas com um olhar calibrado para registar as permutações mais absurdas de cada situação, mas também há uma clara vontade de imbuir cada momento desta narrativa tresloucada com o peso do símbolo e da alegoria.

Dizer que “Sinónimos” é um filme complicado de decifrar é o mesmo que dizer que o Sol é quente. Nadav Lapid não só rejeita qualquer tipo de base realista na sua escrita, como também filma a obra com uma forma em constante mutação, oscilando entre tipos de câmara, abordagem estética e ritmo de cena com uma volatilidade que tanto pode ser tida como um gesto de génio ou uma mostra de indisciplina. Considerando a complexidade bizantina das questões levantadas e subvertidas pelo guião, diríamos que, a nível formal, as escolhas do realizador são propositadas. Esse propósito parece ser a criação de desordem e desorientação, tanto para Yaov como para o espectador, deixando tanto o protagonista como aqueles que o observam numa posição de constante vulnerabilidade e confusão.

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Tom Mercier é extraordinário.

Enfim, apesar das experiências formais de “Sinónimos” serem fascinantes, nem que seja pela sua variedade estilística, é a história em si e seus temas que são a chave para a apreciação da obra. De modo sumário, o filme de Nadav Lapid segue o tipo de preocupações sociopolíticas que caracterizaram as suas duas primeiras, e muito mais convencionais longas-metragens, “Policemen” e “A Educadora de Infância”. Em “Sinónimos”, o realizador retrata o nacionalismo, independentemente de pátria, como uma patologia, uma loucura que é impossível de evitar depois de se enraizar no nosso ser. Mesmo quando os valores defendidos pela causa e psique nacionalista têm valor, a retórica, a forma de pensar que nasce daí é pura insanidade. Violência, ideias de pureza sanguínea, glória no campo de batalha tanto existem nas palavras da marselhesa como nos arquétipos venenosos de uma Israel protofascista.

“Sinónimos” é absurdo porque o mundo de nacionalismos cegos é absurdo. Yaov parece louco, oscilando violentamente entre comportamentos extremados sem motivação, porque a doença da identidade nacional é a loucura. Este não é um filme subtil, pois confusão deliberada não se equaciona a nuance. Lapid tem muito a dizer e suas escolhas são fascinantes, mas, temos de admitir, que o caos acaba por dominar em demasia o seu exercício cinematográfico. “Sinónimos” vai lentamente ruindo sobre o peso da sua alegoria e da experimentação formalista. A única constante é a performance de Tom Mercier que, ao invés de tentar resolver as inconsistências e contradições de Yaov, atira-se de cabeça às insanidades do papel. Nele, pelo menos no seu trabalho físico, “Sinónimos” consegue alcançar os píncaros de excelência artística que podem começar a justificar a estranha vitória do filme na Berlinale.

Sinónimos, em análise
Sinónimos

Movie title: Synonymes

Date published: 13 de May de 2019

Director(s): Nadav Lapid

Actor(s): Tom Mercier, Quentin Dolmaire, Louise Chevillotte, Uria Hayik, Olivier Loustau, Yehuda Almagor, Gaya Von Schwarze, Gal Amitai, Dolev Ohana, Idan Ashkenazi

Genre: Drama, 2019, 123 min

  • Cláudio Alves - 65
  • José Vieira Mendes - 60
63

CONCLUSÃO:

“Sinónimos” é uma proposta audaciosa contra a loucura do nacionalismo. Através de um estudo de uma personagem enlouquecida e perdida num limbo entre ser israelita e ser francês, o filme desdobra-se em experimentações de contraste tonal e formal que produzem uma experiência deliberadamente caótica. Há valor besta abordagem, mas é difícil ignorar as incoerências e fracassos que o filme vai acumulando em igual medida aos seus triunfos.

O MELHOR: A fisicalidade de Tom Mercier que, na mesma cena, consegue usar o seu corpo em prol do erotismo, da comédia absurda ou da sugestão de violência.

O PIOR: Este filme é uma montanha de escolhas arriscadas e meio doidas, pelo que as fragilidades também são muitas. Contudo, mais numa linha do bom gosto e infelizes leituras em retrospetiva, um momento em que Yaov finge disparar uma metralhadora por cima da fachada de Notre Dame ganhou uma qualidade desnecessariamente sinistra, até um pouco conspiratória, desde que o filme estreou em Berlim e, meses depois, a catedral pegou fogo.

CA

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