"A Chuva Acalanta a Dor" | © IndieLisboa

IndieLisboa ’20 | Curtas Nacionais, em análise

Entre um tomatinho trágico e um sonho de bons modos animados, um moço solitário e o cordeiro de Deus, a floresta abstrata e a rainha do folclore, as curtas-metragens portuguesas do 17º IndieLisboa tiveram muito com que deslumbrar seus espectadores.

Como acontece todos os anos, as secções competitivas do 17º IndieLisboa não se restringiram somente a longas-metragens- De facto, algumas das obras mais interessantes e desafiadoras do festival são curtas. Por isso mesmo, decidimos investigar algumas dessas obras de duração reduzida, focando-nos nas produções nacionais. Afinal, nunca é má altura para celebrar o cinema português e alguns dos cineastas a concurso merecem ouvir aplausos e que um holofote seja brilhado sobre eles.

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“Meine Liebe” | © IndieLisboa

“Meine Liebe” de Clara Jost foi premiado pelo júri da competição das curtas-metragens portuguesa e trata-se de uma das propostas mais modestas da seleção. A obra, que nem chega aos 10 minutos, centra-se na documentação da vida de um humilde tomateiro que, chegado o verão da sua juventude, apenas produz um fruto. Emparelhando filmagens em película reluzente com uma banda-sonora solene, Jost concebeu um retrato tragicómico do ciclo de vida vegetal. O instante em que o tomate é suavemente arrancado à planta fica-nos na memória, assim como a estranha violência do seu corte em duas metades. É o sublime que floresce do mundano, um tema transversal a várias secções do festival.

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“Corte” | © IndieLisboa

Outra obra premiada pelo júri foi “Corte” de Afonso Rapazote e Bernardo Rapazote, onde a corte barroca leva o rito social ao seu mais teatral extremo. Com cuidada mise-en-scène, mas algumas dúbias soluções de design, a direção desta dupla impressionou e valeu ao filme com selo de aprovação de Cannes, uma menção especial do Júri das Curtas Nacionais. Outra obra a concurso que havia sido selecionada para o festival francês cancelado pela pandemia foi “Cordeiro de Deus”, realizado por David Pinheiro Vicente. Com Carla Gaivão no elenco, esta é uma miniatura de discórdia familiar atravessada pela festividade religiosa. A destacar está o trabalho de fotografia feito por Joana Silva Fernandes.

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De facto, se há algo que engloba quase todas as curtas portuguesas do IndieLisboa 2020 é o primor da imagem, quer seja capturada em polidez digital ou com a textura rude da película. Em “Regada”, o realizador Francisco Janes pinta a floresta nacional em luz difusa e foco afrouxado. O arvoredo assim ganha qualidade alienante, algo etéreo e distante, quiçá um sonho ou um pesadelo. Por sua vez, “A Chuva Acalenta a Dor” apela a uma teatralidade colorida que produz inesquecíveis tableaux. O texto podia ser mais refinado e menos preso ao classicismo teatral, mas o desenho de produção e sua captura fazem com que o filme se assemelhe a uma pintura a óleo feita de carne e osso, sangue e seda. “Moço” de Bernardo Lopes é menos ostentoso na sua imagem, mas não menos deslumbrante, fazendo grande uso da cara do ator enquanto fenómeno estético.

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“Errar a Noite” | © IndieLisboa

Em “Errar a Noite” de Flávio Gonçalves é corpo nu mais que a cara o elemento humano que mais encanta a câmara. O realizador transfigura a noite lisboeta numa odisseia de desejo queer que ecoa com as notas do “Cabaret” de Bob Fosse e Liza Minnelli. Entre o erotismo e o gesto gentil, o filme surpreende e hipnotiza, traçando um mural das horas perdidas de uma capital adormecida. Também desenrolando temáticas da sexualidade que foge à norma hétero, “A Mordida” de Pedro Neves Marques aparece-nos como uma curta com pedigree adquirido no estrangeiro. Entre a ficção-científica, o romance e o documentário, este é um filme sobre uma pestilência que assola o Brasil. Mentiríamos se disséssemos que o filme não impressiona, mas o seu olhar sobre corpos transgénero peca em demasia pela procura do choque ao invés do retrato honesto e empático. A banda-sonora não ajuda.

Essa mistura do real e do fictício é uma tradição já antiga do cinema português desde que os realizadores do mudo tornaram o retrato etnográfico numa chance para a narrativa. “A Rainha” de Lúcia Pires procura semelhante balanço, usando a linguagem formal do documentário para explorar a natureza do contar de histórias e do mito folclórico. “Bustarenga” de Ana Maria Gomes toma um caminho mais autobiográfico, encontrando sua realizadora à procura de concelhos amorosos entre a vila rural de onde sua família provém. Entre sabedorias envelhecidas e toques de humor inocente, este filme prova ser uma carta de amor à avó portuguesa e às noções mais tradicionais (ou não) do Príncipe Encantado à espera de toda a mulher que o quiser encontrar.

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“Parto Sem Dor” | © IndieLisboa

O “Parto Sem Dor” de Maria Mire encara o documentário com menos irreverência ficcionada, mas não menos inspiração. Devolvendo-lhe um gesto de bondade, a cineasta homenageia aqui a média obstetra, ativista política e feminista portuguesa Cesina Bermudes. Através do arquivo projetado num cubo etéreo e da narração elegíaca, assim se presta respeito à figura do passado que traçou o nosso presente com seus ideais. “Carnage” mirou a América de Trump e viu nela um mundo sem humanos. Por seu lado, “Semanas de Areia, Meses de Cinza, Anos de Pó” de Rita Macedo fala sobre o colonialismo português em Macau, descasca a pátina da mentira fascista e conta também a sua história pessoal.

Finalmente, há que se falar de duas animações a concurso entre as curtas-metragens portuguesas. A sublime “Suspensão” de Luís Soares concebe um gesto possível congelado no tempo, fragmentado e dobrado sobre si mesmo. É uma visão tão surreal quanto bela, um pesadelo e um sonho desenhados com o mesmo lápis. Por fim, a “Mesa” de João Fazenda é pura glória do cinema, um ballet gastronómico que torna os afazeres sociais à mesa de jantar num espetáculo coreografado algures entre a carne e o sonho. Se nós tivéssemos poder de voto, o autor desta sobremesa fílmica teria saído do festival com algum prémio.

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“Mesa” | © IndieLisboa

Temos esperança que algumas destas maravilhosas curtas possam ser vistas no futuro pelo público fora dos festivais. Talvez na TV, em streaming ou no templo do cinema, estas obras portuguesas merecem a nossa atenção e os nossos aplausos também.

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