IndieLisboa ’22 | Silvestre Curtas 2

De ritos nipónicos a máscaras, passando por vampiros históricos e arquiteturas cinematográficas, a programação Silvestre do 19º IndieLisboa tem muito para oferecer. Aqui analisamos as quatro curtas-metragens apresentadas no terceiro dia do festival.

bird in the peninsula indielisboa
© Miyu Distribution

BIRD IN THE PENINSULA de Atsushi Wada

Obcecado com rituais, tanto como fenómenos estéticos como encenações cinéticas, Atsushi Wada baseou a sua mais recente curta num momento mal lembrado de um documentário esquecido. Nessas filmagens de outros dias, o realizador terá observado, com curiosidade, como um grupo de rapazes participava num rito tradicional. Presos à coreografia ancestral, os meninos pareciam enfadados, praticando os gestos como penosa imposição. Tal imagem serve de base a “Bird in the Peninsula,” que, ao longo de 16 minutos, conta a história de um rapaz fugindo de semelhante dança, ao mesmo tempo que persegue um pássaro. Animal esse que só o menino consegue ver.

Também há uma rapariga que o observa, como se quisesse fazer parte do grupo masculino ao qual a entrada lhe é proibida em virtude do sexo. A animação de tradições rígidas serve para ilustrar uma tenebrosa dinâmica de separação e crescimento, crianças cujo lugar no mundo lhes é ditado pelo género biológico e os papéis que forças exteriores lhes atribuem. O transtorno da maturação sexual é outra dinâmica em evidência, ora forma da ave que esvanece como a inocência infantil ou um dragão peludo pronto a devorar os rapazes. São tensões violentas que existem escondidas na linearidade limpa desta curta.

Antes de chegar ao IndieLisboa, “Bird in the Peninsula” passou pela Berlinale. Lá, Wada ganhou uma menção especial do Júri na Competição de Curtas-Metragens.

 

nosferasta critica indielisboa
© Cousins

NOSFERASTA: FIRST BITE de Adam Khalil e Bayley Sweitzer

De longe, o filme mais ambicioso deste particular quarteto, “Nosferasta: First Bite” aborda a questão do colonialismo e seu legado histórico através do imaginário vampírico. A obra marca a primeira parte de um projeto de colaboração entre os realizadores Adam Khalil e Bayley Sweitzer e Oba, um músico rastafariano sediado em Brooklyn. Na curta-metragem, escrita e protagonizada por ele mesmo, o artista revela-se enquanto vampiro com meio milénio de idade. Sua criação enquanto monstro imortal devém das ações de um maior demónio – Cristóvão Colombo, também ele uma criatura da noite com fome de sangue humano.

Entre filmagens pseudo-documentais, filmes dentro do filme e recriações narrativas, somos convidados a ponderar a biografia de Oba, desde o século XV até aos dias de hoje. O argumento da fita é simples, mas não por isso menos radical. Na sua ação de subjugação e abuso sistemático, as forças coloniais foram vampiros da História. Longe de se cingirem a pesadelos irreais, sua malvadez tem consequências ainda hoje sentidas, suas hierarquias de poder perpetuadas eternamente. Apesar da qualidade chocante da estilização e da violência, o mais poderoso plano de “Nosferasta” é vulgar e sem elemento sobrenatural.

Trata-se de um olhar contrapicado para com a estátua de Colombo. Vemos o monumento a ser observado pelas mesmas figuras marginalizadas que vivem num mundo moldado pela sua “descoberta,” um mundo onde ele ainda é venerado enquanto herói histórico. Ora cometido por vampiros ou homens, o mal não morre.

 

triforium critica indielisboa
© LUX Distribution

TRIFORIUM de Jayne Parker

Do filme mais ambicioso neste programa Silvestre do IndieLisboa, passamos para o mais putativamente modesto. É certamente o mais curto, contando apenas sete minutos.

Orientada pela música de Laurence Crane, a câmara aventura-se pelo trifório titular, situado na Abadia de Westminster e resguardado do público por sete séculos. Trata-se de um jogo de observação, onde a fotografia e montagem procuram a sinergia entre a materialidade espacial e as composições de Crane. Alternando entre a botânica e o edifício, trata-se de um exemplo de cinema arquitetónica, definido singularmente pelos seus objetivos formalistas. Há quem possa classificar tal trabalho como experimental, mas diríamos estar perante algo mais clássico, ou mesmo classicista.

“Triforium” é uma expressão de cinema no seu estado puro, feito de tempo manipulado, luz e som. O movimento é escasso, sendo que a realizadora Jayne Parker prefere o plano estático, mas o olho é convidado a mover-se mesmo assim. De facto, mesmo se lhe cortássemos o som, “Triforium” continuaria a ressoar com sua musicalidade inerente. Não seria a música de cordas que Crane imaginou, mas um som produzido pela interação de imagens, a batida rítmica do corte cinematográfico em ação, seu gesto tilintando até no silêncio.

 

masques critica indielisboa
© Olivier Smolders

MASQUES de Olivier Smolders

Apesar de existirem enquanto ensaios cinematográficos, os filmes de Olivier Smolders têm o poder de emocionar, chocar, mover o organismo em involuntária reação de tão visceral que é o efeito daquilo visto no ecrã. “Masques” começa por vislumbrar a paz da floresta, mirando duas árvores caídas que lembram ao cineasta os seus pais enlutados e o luto que lhes fez. O pensamento da morte remete para a máscara social, para o olhar falseado com que nos apresentamos ao mundo. Nas vésperas de uma cirurgia ocular, Smolders reflete sobre o modo como a cara dos pais, seu olhar, lhe está a escapar. Irá ele esquecê-los, cego para sempre mesmo que ainda veja?

Ao longo de “Masques,” o espetador sente quanto a narração de Smolders anda em círculos à volta de um tema dolorosamente pessoal. Para evitar tocar-lhe de forma direta, ele parte para reflexões da face, da máscara. O que são máscaras? Num museu, Smolders encontra o objeto performativo e religioso, faces esculpidas como mentiras que dizem a verdade. Elas escondem, mas revelam. A pesquisa museológica guia-o pelos caminhos da história até chegar a um arquivo de máscaras prostéticas, faces moldadas para ocultar as desfigurações dos soldados regressados da 1ª Guerra Mundial. Num catálogo de carne desfeita, Smolders pondera os olhos que a máscara não cobre.

Ele pondera o mistério de jovens cujos retratos se perdem por entre o inventário macabro. Já no extremo do pensamento, tão longe da sua real preocupação que o filme ameaça estilhaçar-se, o realizador regressa aos pais. Mais do que intelectual, este é um filme que expõe a público a divagação insular. Não se trata do trabalho mais coerente, mas é honesto, refletindo a cacofonia do pensamento humano em tempos de perda, luto e dor.

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Não percas a nossa cobertura do 19º IndieLisboa. Temos muitas análises planeadas, crónicas e mais!

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