IndieLisboa | The Beach Bum: A Vida Numa Boa, critica

16º IndieLisboa | The Beach Bum: A Vida Numa Boa, em análise

O filme de abertura da nova edição do IndieLisboa é “The Beach Bum: A Vida Numa Boa”, com Matthew McConaughey, Isla Fisher e as paisagens húmidas da Flórida.

Harmony Korine é um realizador cuja carreira é uma sinfonia de contradições. Por um lado, desde a sua estreia como argumentista em “Kids”, Korine tem demonstrado um grande interesse em examinar o hedonismo e libertinismo de certas partes da sociedade americana, especialmente no que se refere às gerações mais jovens. Os seus filmes, também enquanto realizador, tendem a confrontar o espectador com representações um tanto ou quanto gráficas de sexo promíscuo, abuso de drogas e álcool e também violência. Estes interesses temáticos levam muitos a ver Korine como um autor disposto a olhar com franqueza para partes da tapeçaria social que os bons costumes nos programam a ignorar ou ver com desdém.

Contudo, indicar Korine como uma espécie de defensor dos marginalizados ou como um artista em busca da desmistificação de tabus seria erróneo. Filmes como “Gummo”, “Trash Humpers” e “Spring Breakers” nunca olham para o comportamento das suas personagens sem julgamentos. De facto, muitos espectadores parecem confundir o chocante com o franco. A câmara de Korine não está nunca interessada na humanidade dos seus sujeitos, mas sim no valor de choque moralista que os seus atos poderão suscitar. Os filmes dele quase nunca ousam encarar as vidas que representam com respeito ou com humanidade, preferindo vê-las como máquinas de choque fácil. Trata-se de cinema da provocação em toda a sua inglória.

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Este é talvez o primeiro filme de Harmony Korine em que o realizador parece genuinamente gostar das suas personagens.

Por outras palavras, apesar de Harmony Korine ter passado a sua carreira a escandalizar audiências burguesas com choque barato, o seu cinema tende a ser defendido pelas mesmas pessoas que ele ridiculariza. Esta bizarra dinâmica deve-se, em parte, ao modo como Korine, não obstante o aparente ódio que nutre pelas personagens, é um cineasta talentoso e capaz de tornar até a mais grotesca recriminação moralista num espetáculo audiovisual do mais alto gabarito. Em termos de narrativa, “Spring Breakers: Viagem de Finalistas”, por exemplo, está a dois passos de ser como um dos filmes de alerta social produzidos na América dos anos 30 e 40 contra o abuso de álcool e marijuana. No entanto, as suas imagens e sons são difíceis de ignorar, uma descida a um inferno sedutor de cores fluorescentes e Britney Spears.

É importante considerar a oeuvre e as contradições de Korine quando se examina o seu mais recente trabalho, pois o filme oferece uma surpreendente variação da fórmula tonal e artística que o cineasta veio a usar até hoje. Em “The Beach Bum: A Vida Numa Boa”, continuamos a ver uma grotesca exploração do hedonismo irresponsável e indisciplinado da América contemporânea, mas, talvez pela primeira vez na filmografia de Korine, não há nem uma nota de julgamento moral a sombrear o espetáculo. Pelo contrário, o realizador parece estar a convidar o espectador a partilhar uma viagem até uma realidade alternativa de privilégio, otimismo contagiante e muitos sorrisos adocicados pelo consumo de estupefacientes.

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Matthew McConaughey é o nosso anfitrião e guia, assim como a estrela do circo que Korine aqui edificou. O ator oscarizado como que leva a sua persona de celebridade até aos limites do absurdo, exagerando o seu sotaque sulista, a postura relaxada, a atitude bonacheirona e o discurso meio pretensioso atrapalhado pela névoa ébria. O resultado é uma figura que mais nenhum ator poderia interpretar, um alegre poeta alérgico a responsabilidades e passa a vida a ter sexo com qualquer rabo de saias que cruze o seu caminho e a arranjar novas maneiras de se divertir na companhia dos amigos e a maior quantidade de drogas recreativas que seja possível reunir. Ele é Moondog, cuja filosofia e atitude dão título a “The Beach Bum: A Vida Numa Boa”.

Para quem for fã das habituais tropelias e manias de McConaughey, o filme será um prazer sem limites. Em contrapartida, caso o espectador não veja muito humor na habitual persona do ator, então ver a obra de Korine até ao fim é uma tortura particularmente cruel. O realizador construiu todo o projeto em volta das tonalidades cómicas que McConaughey tem para oferecer e a estrutura repetitiva da narrativa apoia-se na presunção que o espectador não se cansa de ver o ator a fazer a mesma rotina uma e outra vez, ao longo de 95 minutos. Apesar de Moondog ser uma performance estupenda, não tem grande complexidade, e vê-lo durante um período prolongado é algo parecido com a experiência de estar na companhia de um amigo ganzado que julga que é muito mais divertido e inteligente do que realmente é.

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Tudo depende da reação da audiência face às manias e trejeitos de Matthew McConaughey.

Felizmente, ou não, dependendo da paciência da audiência, Korine reuniu aqui um elenco notável, pronto a arriscar toda a sua dignidade numa coleção de personagens insanas. Isla Fisher é a esposa abastada de Moondog que anda a dormir com um dos amigos do marido, um rapper chamado Lingerie que é interpretado por Snoop Dogg. Zac Efron dá vida a um toxicodependente meio psicótico e Jonah Hill é um agente literário com um dos piores sotaques sulistas já ouvidos. Martin Lawrence, por seu lado, protagoniza um dos episódios mais surreais do filme na pele de um capitão especializado em capitalizar no amor que os turistas têm pelos golfinhos da Flórida. Stefania LaVie Owen, por seu lado, é a figura mais interessante do filme, a filha de Moondog que tanto rejeita a libertinagem do pai, como está sempre pronta a apoiá-lo e lhe mostrar afeto e admiração.

O argumento de “The Beach Bum: A Vida Numa Boa” é um pequeno desastre estrutural, mas há que louvar as variadas loucuras que Harmony Korine lá consegue incluir. Muito louvor também tem de ser dado à conceção formal da obra, cuja montagem está sempre a desfragmentar a coerência espácio-temporal em prol de um ritmo fluido. As imagens, pela sua parte, são maravilhas de cores saturadas com fotografia do genial Benoît Debie, cenários ruidosos de Elliott Hostetter e figurinos espampanantes desenhados por Heidi Bivens. Não há como ignorar as fragilidades frustrantes deste exercício hedonista, mas é também difícil ignorar todo o seu valor. “The Beach Bum: A Vida Numa Boa” pode muito bem ser uma história repreensível e um exemplo de imperdoável indisciplina cinematográfica, mas, pelo menos, representa uma brisa de ar fresco na filmografia do seu autor e uma tentativa desesperada de entreter e divertir num mundo sem sentido e sem esperança.

The Beach Bum: A Vida Numa Boa, em análise
The Beach Bum: A Vida Numa Boa

Movie title: The Beach Bum

Date published: 2 de May de 2019

Director(s): Harmony Korine

Actor(s): Matthew McConaughey, Isla Fisher, Snoop Dogg, Stefania LaVie Owen, Zac Efron, Jonah Hill, Jimmy Buffett, Martin Lawrence, Karla Goodwin

Genre: Comédia, 2019, 95 min

  • Cláudio Alves - 60
  • José Vieira Mendes - 70
65

CONCLUSÃO:

Harmony Korine tem vindo a dizer que, após 2016, as suas intenções enquanto cineasta têm vindo a ir na direção da arte escapista, uma forma de esquecer a miséria e injustiça do mundo real através da fantasia do grande ecrã. “The Beach Bum: A Vida Numa Boa” não é nenhuma obra-prima, mas mostra bem a nova atitude do realizador em ação. Um elenco e uma história nas antípodas do absurdismo e uma construção audiovisual faustosa elevam o projeto.

O MELHOR: As escolhas musicais inspiradas, especialmente o uso de uma canção de Peggy Lee, e a fotografia de Benoît Debie.

O PIOR: A repetição sôfrega da narrativa e o facto de que nada parece ter consequências. Há limites ao escapismo despreocupado e Korine, como sempre, está a tentar ver até onde consegue esticar esses mesmos limites.

CA

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  1. Frederico Daniel 21 de Maio de 2019

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