Le lion est mort ce soir

15º IndieLisboa | Le lion est mort ce soir, em análise

Le lion est mort ce soir” é a mais recente aventura francesa do realizador japonês Nobushiro Suma e um maravilhoso retrato da peculiar posição de Jean-Pierre Léaud na história do cinema. Este é também um dos títulos da secção Silvestre do presente IndieLisboa.

Jean-Pierre Léaud não é um ator. Jean-Pierre Léaud não é uma pessoa. Isto é verdade quando uma câmara lhe é apontada. O menino de “Os 400 Golpes” cujo processo de crescimento até à velhice presente foi inexoravelmente cristalizado pela História do Cinema Francês já viveu tanto tempo diante das câmaras, que se tornou testemunha da sua própria elevação a algo sobre-humano. Jean-Pierre Léaud pode não ser um mero ator ou uma pessoa, mas é Jean-Pierre Léaud, um emblema simbólico do cinema francês, uma lenda viva, um conceito materializado em carne e osso. Essencialmente, Jean-Pierre Léaud é cinema em forma humana e, nos últimos anos, com a sua fragilidade física a acentuar-se a cada dia que passa, todas as suas aparições em filmes parecem sempre sugerir algo semelhante a um testamento, ou talvez um tratado sobre a mortalidade cinematográfica ou uma elegia.

Em “A Morte de Luís XIV”, Albert Serra levou as questões de mortalidade a extremos sepulcrais, quase que equiparando a figura de Léaud a uma personificação de toda a França e seu legado artístico, perscrutando o seu definhar terreno com tanta reverência como franqueza visceral. Sem a radicalidade áspera ou relativa crueldade desse cineasta catalão, o japonês Nobuhiro Suwa também se propõe a explorar tais temas usando Léaud como seu principal ponto de foco. Em “Le lion est mort ce soir”, contudo, o produto final não é um objeto de culto funéreo, mas sim um encontro esperançoso e radiante entre o passado e o futuro do cinema, entre as lendas de outros tempos e os jovens que ainda virão a construir história no futuro.

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“(…)Jean-Pierre Léaud é cinema(…)”

Com um olho no passado e outro no presente, “Le Lion est mort ce soir” começa com uma cena bem reminiscente de um dos projetos mais marcantes na áurea carreira de Léaud, “A Noite Americana” de Truffaut. O cenário é o plateau de um filme protagonizado por Jean, um ator já a aproximar-se do fim da sua vida que, por essa mesma proximidade com o seu fim, se sente desconfortável e indeciso em relação à interpretação de uma cena em que morre. O realizador do projeto vê a morte como algo delicado e gracioso, um suspiro gentil e muito calmo. O ator, longe de tais idealismos românticos, vê o momento da morte como um encontro há muito temido e ponderado pois, dos 70 aos 80 anos, o homem está sempre a confrontar-se com a iminência do seu definhar.

A ausência de uma atriz causa uma pequena pausa nas filmagens e Jean usa esse tempo para se reencontrar com literais fantasmas do passado. Com flores na mão, o velho ator deambula em busca de uma mulher para as oferecer. Com todo este olhar temporalmente virado para trás, há que se ter cuidado ou as flores ainda murcham antes de chegarem a qualquer destinatário. Afinal, não obstante a que direção do fluxo temporal a nossa atenção está virada, as águas do tempo nunca param e são impiedosas. Ele lá parece chegar ao seu destino quando entra numa casa semi-abandonada e nela encontra Juliette, uma formosa mulher na casa dos 20 que se revela como o espectro do amor da vida de Jean, uma mulher que já morreu há mais de 40 anos e cujo sepulcro ele adorna com as flores que consigo trazia.

Esta imagem de um homem e uma mulher com uma cataclísmica distância de idades é algo perversamente comum no cinema mundial, especialmente no francês, mas aqui há uma considerável subversão da ideia. Noutro filme qualquer, Jean seria uma lembrança de mortalidade em contraste direto com a juventude florida da sua amada, mas aqui, ambos são espectros. Ela já morreu e ele, ainda não faleceu, mas o seu espírito parece estar inexoravelmente preso ao passado, nem que seja ao passado do cinema. Durante uns dias, Jean torna-se assim também num espectro, uma manifestação assustadora que vagueia por uma casa sombria. É exatamente essa aparição fantasmagórica de um velho assustador que um grupo de crianças com aspirações de cineastas encontra quando estão a explorar o casarão.

Os miúdos querem fazer um filme e usar o casarão como cenário principal. Para além disso, tendo sido confrontados com a presença de Jean e fascinados pela sua reticente história de amor trágica, eles decidem que o querem também empregar como ator. Entre a figura de um velhote acídico e um avô risonho, Jean quase que vai ensinando os miúdos a arte de fazer cinema, exigindo que eles resolvam que tipo de filme querem produzir e também fazendo questão que eles escrevam um guião. Esse dito texto acaba por ser um reflexo e um presságio da realidade de Jean, uma história de fantasmas que tanto imita como influencia o ator e sua relação com o espectro de Juliette.

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“(…)não obstante o conforto das glórias de outros tempos, há que se olhar para a frente.”

Deixando que o seu elenco juvenil se exponha em cenas de improvisação e anárquica revelia, Suwa evita que o filme caia num poço sem fundo de sacarino sentimentalismo como acontece com muitas histórias semelhantes. Tal registo contrasta brilhantemente com a atitude do veterano Léaud e a fricção entre atores e personagens cria um retrato delicado, mas não condescendente, do júbilo do cinema. Como Jean diz ao ver o trabalho finalizado dos seus aprendizes rebeldes, este é um filme simples, mas belíssimo, um filme que nos faz sentir o prazer de fazer cinema. O virtuosismo formal do realizador japonês, que tudo filma em cores saturadas e planos sequência reminiscentes das experiências coloridas de Godard e Remy nos anos 60, apenas exacerba esta qualidade de “Le lion est mort ce soir”, uma carta de amor ao cinema. Ou melhor, uma carta de amor ao cinema que já foi e ao cinema que está para vir, que nos lembra como o futuro é construído sobre os alicerces do passado e que, não obstante o conforto das glórias de outros tempos, há que se olhar para a frente.

 

Le lion est mort ce soir, em análise
Le lion est mort ce soir critica indielisboa

Movie title: Le lion est mort ce soir

Date published: 2 de May de 2018

Director(s): Nobuhiro Suwa

Actor(s): Jean-Pierre Léaud, Pauline Etienne, Louis-Do de Lencquesaing, Jules Langlade, Adrien Cuccureddu, Adrien Bianchi, Louis Bianchi, Romain Mathey, Mathis Nicolle, Coline Pichon-Le Maître, Emmanuelle Pichon-Le Maître, Rafaèle Gelblat, Lou-Ann Mazeau-Guéguen, Arthur Harari

Genre: Drama, 2017, 103 min

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO

Jean-Pierre Léaud continua a marcar as últimas décadas do seu trabalho de ator com projetos meta textuais sobre mortalidade e cinema, mas aqui fá-lo com uma leveza e boa dose de esperança que surpreendem e comovem. Escolhas formais simples e eficazes, assim como genial direção de tipos muito diferentes de atores, dinamizam esta experiência intergeracional.

O MELHOR: A presença de Léaud.

O PIOR: O uso de um leão, metáfora materializada, que descansa às margens de um lago e depois vagueia pelas ruas de uma cidade costeira. O filme ficaria melhor sem estes instantes de simbolismo gritado.

CA

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