Lembro Mais dos Corvos

15º IndieLisboa | Lembro mais dos corvos, em análise

Lembro Mais dos Corvos” é a primeira longa-metragem do brasileiro Gustavo Vinagre e um dos filmes na secção de Competição internacional do presente IndieLisboa.

Espectadores assíduos dos festivais de cinema lisboetas talvez se recordem da participação de Julia Katharine numa das curtas que esteve, o ano passado, em competição no Queer Lisboa. Nessa curta-metragem, intitulada “Filme-Catástrofe”, a atriz transgénera de São Paulo estava a interpretar uma personagem escrita por Gustavo Vinagre, uma construção declaradamente fictícia. Neste mais recente projeto, uma suposta longa-metragem documental, a atriz está putativamente a apresentar-se sem ficções ou dramatismos cénicos. É, portanto, interessante constatar que uma das mais fascinantes facetas de “Lembro mais dos Corvos” é dúbia validade dessa afirmação. Por outras palavras, a barreira entre o que é real e o que é ficção cinematográfica é muito porosa, indefinida e imaterial neste filme que, a um primeiro olhar casual, parece pouco mais que uma entrevista rudimentar.

Apoiando-se numa ideia de intimidade documental, “Lembro Mais os Corvos” passa-se integralmente dentro do pequeno apartamento da atriz em São Paulo durante uma noite passada na companhia do seu amigo realizador. Aliás, a conversa entre os dois inicia-se depois de Julia não conseguir adormecer, algo habitual na sua vida atormentada por insónias. Este contexto é claramente uma construção cénica, um mecanismo estrutural para Vinagre introduzir a premissa conversacional do seu retrato fílmico, mas não deixa por isso de estar assente numa reprodução, se bem que orquestrada, dos dilemas reais da sua entrevistada. Estes tipos de construções estão presentes em quase todos os documentários, mas a simplicidade extrema, assim como os temas de conversa, de “Lembro Mais os Corvos” tendem a salientar tais artifícios.

Lembra Mais dos Corvos critica indielisboa
“(…)o cinema tem um papel de máxima importância na vida desta mulher.”

A conversa despoletada por estas insónias e pela conveniente presença do amigo realizador de câmara em punho é, no entanto, desprovida de tais marcas de encenação. Sem muito pudor ou reticência, Julia Katharine vai falando das suas primeiras experiências sexuais e amorosas, confiando ao espectador alguns dos seus segredos mais chocantes. Quando ainda toda a gente a tratava como um rapaz, por exemplo, foi o seu tio-avô que, quando estavam sozinhos, consentia em tratá-la como uma rapariga. Esse homem, que tinha sido como um pai para a mãe de Julia, acabou por tomar a menina, que ainda nem 10 anos tinha, como sua amante e a relação durou anos.

Tal conteúdo poderia sugerir um filme cheio de choques gratuitos e lúridas exumações de escândalos pessoais, mas há algo de pragmático e pouco sentimental em Julia, sua presença algo tão carismático como calmante. Na sua voz rouca, mas doce, a atriz admite que foi só anos depois que se apercebeu da realidade do seu abuso. No entanto, também admite que tem dificuldades em ver-se a si mesma como uma vítima. Pela sua parte, nem a voz de Vinagre nem qualquer elemento do filme alguma vez tentam oferecer repostas fáceis aos dilemas do seu sujeito. Julia não ousa procurar justificações. O que ele fez, sabe que foi abominável, mas não admite também negar que ele teve uma parte importante na sua vida.

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Como que se apercebendo da corda bamba tonal em que a sua história colocou o filme, a atriz até chega a perguntar ao seu realizador que tom ele quer nos seus relatos. É que, o modo como ela está a contar tudo fá-la pensar que o filme será demasiado triste. Não que ela não goste de filmes tristes, muito pelo contrário. Aliás, é na sua listagem de importantes marcos cinematográficos que o tema principal deste exercício começa a surgir. Segundo as palavras da mãe de Julia, ela vive num filme, deixando-se guiar pelas ficções que vê no grande ecrã. A atriz acha que isso é um exagero, mas depressa começamos a perceber que talvez haja alguma verdade aí. Uma coisa é certa, o cinema tem um papel de máxima importância na vida desta mulher.

Mesmo a sua preocupação em não se apresentar como uma vítima acaba por ganhar um teor quase meta cinematográfico, sendo ela uma atriz a modular o seu papel. Neste caso, o papel é ela mesma, Julia Katharine, a mulher, a atriz, a brasileira que esteve no Japão a tentar conhecer o pai e agora se pavoneia em quimonos caros pelo seu apartamento enquanto fala da sua preferência pelos dramas domésticos de Ozu em comparação com as obras de Kurosawa e Mizoguchi. Esse sim, é um dos momentos mais descaradamente encenados do filme, tanto que, mesmo depois de cortar, Vinagre não para de filmar, mostrando-nos a atriz a sair, ou não, do papel de si mesma no documentário.

Lembro Mais dos Corvos critica indielisboa
” Na verdade, só conhecemos o seu reflexo cinematográfico(…)”

Noutra vida, é fácil imaginar Julia Katharine como uma personagem interpretada por Gena Rowlands num filme de Cassavetes, uma alma definida no espaço entre a ficção e a suposta realidade do dia-a-dia. Julia, efetivamente, vive agora no cinema, mais um espectro virtual preservado para sempre no cânone do grande ecrã como tantos outros antes. Mas Julia Katharine não é uma personagem passiva, ela quer realizar o filme da sua vida e, depois de falar um pouco sobre a sua direção de filmes eróticos, ela toma mesmo as rédeas de “Lembro mais os Corvos”.

Nos seus derradeiros momentos, este retrato pessoal, que é tão mais valioso por se recusar a reduzir esta atriz à sua identidade de género, passa a ser uma obra realizada por Julia Katharine. Ela dirige a câmara e aponta-a para fora da janela, para partilhar connosco e com o seu amigo cineasta, o grande tesouro que as insónias lhe trouxeram. Assim, a ver o nascer do sol em São Paulo termina este filme simples e estranhamente profundo, um exercício modesto, mas inteligente que nos dá a preciosa ilusão de conhecermos outro ser humano. Na verdade, só conhecemos o seu reflexo cinematográfico, mas talvez isso seja suficiente, talvez isso já seja algo grandioso por si só.

 

Lembro mais dos corvos, em análise

Movie title: Lembro mais dos corvos

Date published: 2 de May de 2018

Director(s): Gustavo Vinagre

Actor(s): Julia Katharine

Genre: Documentário, 2018, 82 min

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO

“Lembro Mais os Corvos” é um simples, modesto e muito íntimo documentário brasileiro, onde o cineasta Gustavo Vinagre entrevista a sua musa, a atriz Julia Katharine e, por entre contos de um passado sexual chocante e relações familiares dolorosas, cria um documento precioso sobre a relação de uma mulher e o cinema.

O MELHOR: A história anedótica de como Julia Katharine, quando trabalhava num clube de vídeo, costumava levar alguns dos filmes que ninguém queria ver para casa. Esses eram os títulos sobre os quais ela lia nas revistas de cinema, as obras de Bergman, Fassbinder e Allen, entre muitos outros. O público geral estava mais interessado nas comédias de Eddie Murphy.

O PIOR: Tal como “Filme-Catástrofe”, esta obra deixa-nos a querer mais. A simplicidade e curta duração podem ser uma mais-valia, mas não deixam por isso de ser frustrantes quando a qualidade do material é tão elevado como aqui.

CA

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