"Pearl" | © A24

IndieLisboa ’23 | Pearl, em análise

Pearl” é a prequela de “X,” terror original do realizador Ti West. Após estreia glamorosa na Bienal de Veneza, o filme alcançou  sucesso nos cinemas Americana, confirmando o domínio da distribuidora A24 sobre o mercado do terror independente. Agora, chega a Portugal pela mão do IndieLisboa que, no seu vigésimo ano, volta a exibir um programa pesadelo com a secção Boca do Inferno.

Quando Ti West e Mia Goth começaram a trabalhar juntos, a ideia era a construção de um só filme. A colaboração resultou em “X,” homenagem meio pastiche sobre o sexploitation dos anos 70, onde temas de repressão tóxica se articularam através do modelo slasher. Em papel duplo, Goth deu vida a Maxine, final girl estrela porno, e a Pearl, uma anciã assassina. Nesse primeiro filme, os detalhes sobre a vilã são sugeridos em jeito oblíquo, fazendo dela um símbolo do desejo oprimido por um corpo envelhecido e normas sociais de tal modo que explode em violência.

Tal como tantas criações de artistas inspirados, a personagem acabou por ganhar vida própria. Acontece que, durante a produção de “X,” realizador e atriz principal desenvolveram um segundo argumento, explorando o passado de Pearl para desvendar as origens do mal. Com a calamidade do COVID a abater-se sobre a indústria ao mesmo tempo que a rodagem do primeiro filme terminava, West decidiu por mãos à obra o quanto antes. Daí nasceu “Pearl” cuja feitura revela o suor frio de uma equipa desesperada, abençoada com menos recursos que em “X” e múltipla dose de liberdade criativa.

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Talvez por isso a obra aparenta estar a rebentar pelas costuras com ideais estrambólicas, algumas das quais não coerem, mas maravilham mesmo assim. Nesta nova história, rebobina-se a cronologia do original para se perscrutar um mundo em crise duplicada. Estamos no verão de 1918, quando a Primeira Guerra Mundial ainda flagela o globo e a Gripe Espanhola ceifa mais vidas ainda. A pandemia de hoje reverbera pela pandemia de ontem, conferindo um sabor de intemporalidade amarga às imagens de uma população aterrorizada pelo contágio.

Dito isso, antes de se ponderarem estes assuntos, já West e companhia nos estimularam os sentidos com uma abordagem estilística de fazer doer a vista. Em Cinemascope rasgado, o ecrã aparece-nos enquanto Technicolor ressuscitado na forma digital, toda a tonalidade levada às antípodas da saturação. O resultado é uma realidade irreal, o artifício do cinema exposto e chamativo, como que num gesto Brechtiano onde a falsidade do engenho artístico comenta sobre si mesma. Em termos de referência, West tem apontado uma panóplia de fontes, nenhuma delas presa ao mesmo tipo de reprodução direta vista em “X.”

Não se trata de uma tentativa de recriar a estética de filmes passados. Ao invés, temos aqui a combinação de ingredientes distintos num valente cocktail, algo que faz sentido gustativo sem, no entanto, primar pela lógica. Afinal, o que tem o melodrama irónico de Douglas Sirk que ver com “O Feiticeiro de Oz,” a extravagância musical da MGM com o gore em tons de giallo? Enfim, solidez intelectual nem sempre deve ser priorizada, e “Pearl” é bom exemplo disso. Mesmo que a história com ‘h’ maiúsculo não se relaciona diretamente com o formalismo escolhido, a narrativa fá-lo e as variações tonais também.

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Parte dessa dinâmica depende da profunda subjetividade pela qual o filme se orienta, aliando-se à mente conturbada da sua personagem titular. Ela é Pearl na flor da juventude, abandonada pelo marido que partiu para a guerra e enclausurada na casa da família à guarida de uma mãe severa e pai incapacitado. Sua vida passa na agonia da banalidade rural, trabalho de quinta e solidão retorcendo a sanidade da mulher. Quando pode, lá se aventura na localidade próxima, roubando umas tardes ilícitas no cinema graças ao favor de um projecionista charmoso. Já aqui se sentem os clamores da sexualidade, entorpecidos por regras até que se transformam em algo vil.

Dito isso, reduzir a história de Pearl a repressões venenosas seria erróneo. Existe algo perturbador dentro dela, o impulso destrutivo que a atormenta tanto como as forças exteriores contra a sua vontade. O sonho da fuga e do estrelato fomentam a mentira própria, e a rejeição é o golpe final que estilhaça qualquer conexão entre a protagonista e a realidade. É na violação final desta harmonia que a liberdade se revela em ação assassina, como que um apocalipse pessoal expandido para fora. O caos interior alastra-se e, de repente, a exuberância audiovisual é espelho da história, da ação.

Nada disso funcionaria sem o elemento central de “Pearl,” a cola que agarra todas as partes dispares e assim formula um terror melodramático na vertigem do camp. Não se trata da fotografia colorida de Elliot Rockett ou as composições musicais assinadas por Tyler Bates e Tim Williams. Não é sequer a realização segura de um Ti West no pico da ousadia, por muito fantástica que seja. Na verdade, referimo-nos a Goth que, nos últimos anos, se tem revelado enquanto diva fabulosa do cinema de género contemporâneo. Em “Pearl,” a atriz desvenda a sua mais ensandecida criação, renegando o realismo com ferocidade.

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Tudo começa com um toque de humor negro, quotidianos domésticos interpretados com um brilho demoníaco no canto do olho. Transcende-se a psicologia para chegar a algo mais primordial, um estado de desgraça mais próximo do cinema puro do que da humanidade. Quando a alucinação chama pelo júbilo musical, os sorrisos assustam pela intensidade desmesurada, enquanto a dor da desilusão se expressa em gritaria robusta. Contudo, é claro que nada supera a repentina disciplina exposta pelo monólogo filmado num take só. Durante quase oito minutos, Mia Goth sustenta a atenção da câmara em close-up claustrofóbico, demonstrando uma implosão de medo. Pearl morre aterrorizada por si mesma e essa aflição trespassa o ecrã para vir infetar o espetador. É um assombro, uma tour de force que garante o lugar da atriz no panteão das scream queens.




Pearl, em análise
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Movie title: Pearl

Date published: 29 de April de 2023

Director(s): Ti West

Actor(s): Mia Goth, David Corenswet, Tandi Wright, Matthew Sunderland, Emma Jenkins-Purro, Alistair Sewell, Amelia Reid

Genre: Drama, Terror, Thriller, 2022, 103 min.

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

Depois do sexploitation dos anos 70 vem a memória de uma pandemia passada, terra fértil para fazer nascer novos males e psicoses. Trajada em vermelho, Pearl é uma Dorothy Gale sedenta de sangue, pronta a caminhar pela sua estrada amarela rumo ao inferno. Mal podemos esperar pelo próximo capítulo nesta saga – “MaXXXine.”

O MELHOR: Goth, sua convicção e exagero, sua habilidade para suster o monólogo e os créditos que se desenrolam sobre um sorriso maníaco.

O PIOR: Por muito que a fotografia o esconda com cores fortes, nota-se uma enorme diferença na qualidade cenográfica de “Pearl” em comparação com “X.” Também o elenco secundário perde muito, sendo totalmente ofuscado por Goth o que não acontece com o primeiro filme.

CA

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