"Shin Ultraman" | © Toho

IndieLisboa ’23 | Shin Ultraman, em análise

Shin Ultraman” aparece-nos no seguimento espiritual e estilístico de “Shin Godzilla,” sendo obra da mesma equipa criativa. Tal como o antecessor, o filme demonstra uma vontade de reinventar os clássicos do cinema japonês, entre kaijus, mechas e tantos demais. Realizado por Shinji Higuchi com argumento de Hideaki Anno, esta aventura tem feito a volta ao mundo, ora em festivais ou distribuição comercial, sendo uma das produções nipónicas com mais sucesso do ano passado. De facto, no universo Ultraman, é o título que mais lucrou na bilheteira. No 20º IndieLisboa, integra a secção Boca do Inferno, dedicada ao cinema de género.

Hideaki Anno é um dos cineastas japoneses cujo trabalho mais tem marcado as últimas décadas. Em termos de impacto cultural, nada baterá a sua obra maestra, “Neon Genesis Evangelion,” estreada em televisão dos anos 90, antes de incursão pelo cinema e presente reinvenção com os chamados “Rebuild of Evangelion.” Suas criações normalmente consideram questões filosóficas através dos códigos estabelecidos no cinema popular e anime do seu país. Aliás, investigando as origens profissionais, naquele tempo quando Anno ainda era animador para outros cineastas como Miyazaki, deparamo-nos com suas primeiras subversões.

Em 1983, foi ele que assinou a curta-metragem “Daicon Film’s Return of Ultraman,” onde parodiava a personagem heroica. De facto, nessa comédia de baixo orçamento planeada como projeto escolar, até o papel principal coube ao jovem Anno. Passados quase quarenta anos desde então, reencontramos o artista na senda desse ícone que é o Ultraman. Só que, agora, não se baseia o seu trabalho na paródia trocista. Existe o gesto subversivo, a tentativa de dissecar a imagética e o que ela significa para o público, mas tudo se constrói consoante uma ordem de sinceridade absoluta. Este é o trabalho de um fã em homenagem a um legado por si adorado.

shin ultraman critica indielisboa
© Toho

Afinal, “Shin Ultraman” é a continuação do projeto começado com “Shin Godzilla,” continuado em “Shin Kamen Rider,” um esforço para re-imaginar o cinema de ação tokusatsu para o século XXI. No caso do primeiro filme, sentimos uma clara alusão ao desastre natural de Kukushima, apelando à narrativa de monstros kaiju como uma forma de lidar com o trauma nacional através da fantasia. Por isso mesmo, existe uma ênfase na coletividade, nas instituições mobilizadas para controlar o desastre. O novo “Ultraman” não é tão bem-sucedido, em parte, porque abandona a ideia do herói coletivo em necessária adaptação ao material de origem. Até a estética da coisa se replica no desenho, com Ultraman mantendo o aspeto kitsch que tem há décadas.

Mas quem é Ultraman? A figura tem as suas origens numa série com o mesmo título que chegou às televisões japonesas em 1966. Foi o primeiro numa coleção de semelhantes heróis e vilões, tendo até sido primeiro edificado como um alienígena réptil capaz de se transformar em guerreiro gigante. Na sua forma final, contudo, Ultraman aparece-nos enquanto um ser humano fundido com consciência extraterrestre, capaz de invocar poderes especiais para se transformar num super-herói com a altura de um arranha-céus. Tendo já passado por mais de cinquenta encarnações, a origem e forma da personagem tendem a seguir sempre a mesma lógica.

Também é o caso de “Shin Ultraman,” onde o nosso protagonista esconde as habilidades e trabalha como parte de uma força governamental direcionada para o controle, talvez aniquilação, dos muitos monstros que têm invadido o Japão. Ele é Shinji Kaminaga, interpretado por Takumi Saitoh numa prestação que deixa um pouco a desejar em termos de personalidade multidimensional. O texto está lá, com divagações perto do fim a brilharem com algum do fatalismo cósmico tão espetacular em “Evangelion.” Só que o intérprete, como quase todos neste elenco, aparece-nos enclausurado numa mescla de registos extremados que nunca transcende a superficialidade de um exercício para atores.

Anno e o realizador Shinji Higuchi concetualizaram o modo de atuação em “Shin Ultraman” como uma espécie de pastiche dos tokusatsu de outros tempos, com uma angularidade estilizada mais próxima do anime moderno. Existe uma clara recusa do real, mas quando tanta da narrativa depende do nosso investimento emocional nas personagens, a alienação prejudica. Quem se melhor safa é Hidetoshi Nishijima como o líder da equipa a que Kaminaga pertence, e Koji Yamamoto como o alien Mefilas. É ele que, qual emissário de seres maiores que deuses, vem testar se os humanos têm a capacidade de se tornar em Ultra guerreiros.

Parte do triunfo destes dois atores devém do equilíbrio achado entre o cartoon humano e a pequenez que a câmara demanda. Ainda para mais, a imagem em si tem tanta loucura estilística que a sobredosagem de um elenco no mesmo tom causa a overdose, mata o drama. Antes de chegarmos a essas considerações audiovisuais, fica mais uma mácula apontada a “Shin Ultraman” – sua estrutura. Em termos gerais, a história da fita é bem básica, consistindo numa série de encontros entre ameaças alienígenas e Ultraman. Perto do fim, temos o futuro da humanidade em risco, com o nosso herói híbrido entre a sobrevivência da espécie e a vontade despótica de seres todo-poderosos que a querem eliminar.

Só que, o enredo resolve-se aos soluços, partindo as duas horas do filme naquilo que aparentam ser episódios de vinte e poucos minutos com ritmo marcado. Ainda por cima, Kaminaga existe quase sempre enquanto figura periférica, seu segredo pondo-o de lado das cenas com mais foco nas personagens e sua equipa. Isto resulta em conto simples contado com desnecessárias complicações, assemelhando-se a uma minissérie de TV conscrita à duração da longa-metragem mainstream. Ou seja, está a rebentar pelas costuras ao mesmo tempo que se mostra anémico, um texto paradoxal que frustra em especial porque está cheio de pequenos momentos de génio.

shin ultraman critica indielisboa
© Toho

Lamentações postas de parte, passemos à celebração sem “mas” metidos pelo meio. Não querendo cair na hipérbole, “Shin Ultraman” é quiçá o filme de super-heróis com mise-en-scène mais interessante desde os anos 90, cada plano composto com um fervoroso apelo à fragmentação de espaços e ângulos agudos. Considerem o trabalho de Higuchi e dos diretores de fotografia Osamu Ichikawa e Keizô Suzuki nas várias passagens em que os colegas de Kaminaga conferem entre si na ausência do herói. A cadeira vazia dele permanece quase sempre na imagem, com todos e mais alguns truques de perspetiva para contorcer o restante espaço em torno do objeto vazio.

Pode não parecer muito quando é assim descrito. Só que a variedade de soluções distintas para o mesmo problema visual faz com que até a mais aborrecida interação vibre com palpável empenho criativo. A montagem segue o mesmo pensamento, partindo cada movimento numa série de gestos em contínua propulsão. A estrutura pode falhar ao nível macro, sem, no entanto, afetar estes momentos micro. “Shin Ultraman” não é comparável a quase mais nenhum filme recente, a não ser que vamos além do live-action para encarar a animação. O seu uso do widescreen, então, dá vontade de chorar de alegria e bater palmas. Até o efeito rudimentar, quiçá mal feito, se redime quando posto neste contexto estilístico. Oxalá a história humana estivesse ao mesmo nível do engenho formalista. Enfim, não se pode ter tudo.




Shin Ultraman, em análise
shin ultraman critica indielisboa

Movie title: Shin Ultraman

Date published: 30 de April de 2023

Director(s): Shinji Higuchi

Actor(s): Takumi Saitoh, Masami Nagasawa, Hidetoshi Nishijima, Daiki Arioka, Akari Hayami, Tetsushi Tanaka, Kyûsaku Shimada, Hajime Yamazaki, Sôkô Wada, Kôji Yamamoto, Kenjirô Tsuda

Genre: Ação, Aventura, Drama, 2022, 118 min.

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

Formalmente audaz, “Shin Ultraman” continua o projeto de Hideaki Anno, reinventando um cinema do passado popular para novas audiências e sensibilidades. Não se desrespeita o desenho kitsch nem a sinceridade narrativa, mas a construção de cena existe num contingente evolutivo com sua génese na ação e no anime mais recente. Trata-se de um trabalho mais disfuncional do que “Shin Godzilla,” mas não deixa por isso de ser um esforço meritoso. Se todos os filmes de super-heróis fossem como este, o cinema moderno estaria de melhor saúde.

O MELHOR: As composições ensandecidas, a montagem de diálogos como se fossem explosões da mais pura ação e violência, o desenho dos vilões quando se apresentam em tamanho de gente. A qualidade de imagem pode tender para o feio digital, mas a sua construção é tão magnífica que se ignoram os pequenos defeitos.

O PIOR: A estrutura disfuncional que faz o filme parecer uma temporada televisiva abreviada para consumo em sala de cinema.

CA

Sending
User Review
3.5 (2 votes)
Comments Rating 0 (0 reviews)

Leave a Reply

Sending