"Little Otik" | © Athanor

IndieLisboa ’23 | Little Otik, em análise

“Little Otik,” intitulado “Otesánek” no original checo, é uma das obras mais famosas do cineasta, animador, génio louco Jan Švankmajer. Trata-se de uma adaptação de conto-de-fadas antigo feito terror moderno, misturando o drama doméstico com efeitos stop-motion tão grotescos que dão calafrios. Estreado no Festival de Veneza em 2000, o filme chega ao 20º IndieLisboa dentro de uma retrospetiva dedicada ao realizador, em exibição na Cinemateca Portuguesa.

Tudo começa com um pesadelo nascido da ansiedade parental, um homem levado ao limiar da loucura pela notícia de infertilidade. Há anos que Karel e Bozena Horáková tentam ter filhos, mas jamais sucedem no esforço, tendo os médicos só agora diagnosticado o caso perdido. No regresso do hospital a casa, todo o mundo parece troçar do seu fado, com alucinações planando bebés até onde a vista alcança. Um olhar para a rua invoca a imagem de um comerciante que vende meninos como se eles fossem carne do talhante. Parados na passadeira, o casal vê mulheres grávidas diante dos olhos e, na cozinha, uma melancia abre-se pare revelar outro bebé imaginado.

Švankmajer orquestra este horror como um mudo, apoiando-se na expressividade da imagem e montagens abruptas para trespassar a agonia das personagens. Há também humor negro na alquimia tonal, como se o realizador quisesse tanto promover a empatia como o nojo, o gozo. Acima de tudo, persiste o desconforto absoluto, brevemente sublinhado pela terceira figura central da trama. É ela Alžbětka, filha dos vizinhos que tudo vêem e comentam, julgamento vivo nos seus olhos. A menina, contudo, tem os seus próprios problemas além da bisbilhotice, debatendo-se com os olhares salazes de um velho pedófilo, outro morador do prédio.

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© Athanor

Dito isso, esses são meros detalhes introdutórios, sendo que o cineasta aqui se propõe a adaptar um conto-de-fadas oitocentista de Karel Jaromír Erben em filme com mais de duas horas. É um milagre como o trabalho final não nos parece forçosamente esticado, qual ato de magia negra por parte de Jan Švankmajer. Mas, é claro, os feitiços reais ainda estão mais à frente na narrativa, suscitados por um ato ímpio fruto do desespero. Acontece que, durante umas férias no campo, em companhia com os vizinhos, o Sr. Horáková desenterra raiz estranha no quintal da propriedade. Aí está a origem do mal, sua génese.

Entre a prestação de Jan Hartl e a montagem de Marie Zemanová, o momento manifesta-se qual perversão do ato sexual, quiçá uma espécie de parto masculino. Em todo o caso, Karel esculpe a madeira até ter a forma tosca de um bebé com quatro membros, cabeça e sexo, um presente irónico para a esposa com quem partilha a dor. Só que Bozena não reage ao humor negro com o riso. Pelo contrário, ela trata a raiz como se fosse um bebé de verdade, seu filho há muito desejado. Estonteado com a demência dela, Karel, mesmo assim, apoia-a na ilusão e encena a mentira pública com a mulher. Falsear-se-á a gravidez, para que o menino possa ser trazido a casa.

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Neste primeiro ato, “Little Otik” funciona enquanto tragicomédia psicológica, com o realizador e seu elenco a delinear os paradigmas do suspense. Quando é que o engodo será desvendado? Será a curiosa Alžbětka a heroína da verdade? Mas o que é a verdade? Que a raiz não é filho, que não é viva? Bem, a situação complica-se quando Bozena finge o parto prematuro, sequestrando-se na casa de campo. Lá, Karel vai encontra-la em jeito de Virgem Maria, seu peito leitoso na “boca” do “bebé.” Está vivo, um milagre de onde não vem um Jesus dos nossos dias, mas algo mais próximo do Anticristo. Além do mais, o bicho tem fome.

Gradualmente, “Little Otik” – esse é o nome dado ao menino de madeira – vai-se tornando em filme de terror, com muito apoio do stop-motion com que Švankmajer anima a figura titular. Já antes ele havia sugerido esse registo, mas havia sido só como visão mental da menina, cujo temor do pedófilo se manifesta no assombro de uma mão a sair da virilha, um punho-pénis desperto em solavancos. Otik, em si, é mais fluido e fantástico. Mais aterrorizador também, jamais perdendo a aparência botânica, agora fundida com fragmentos da anatomia humana. Na sua boca veremos dentes e gengiva, mas também músculo disforme e um olho solitário.

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Tais detalhes só se mostram no momento do comer, o estado constante de Otik cuja voracidade é impossível de saciar. Primeiro, é leite e muita papa, mas quando saboreia os cabelos da mãe os apetites tornam-se mais lúgubres. Um dia, o gato da família torna-se seu jantar e não tarda muito até que seres humanos se juntem à ementa. Vai um pobre carteiro e assistente social, muita gente digerida naquele estômago com a profundidade de um buraco negro. Ele cresce e cresce, cada vez mais difícil de conter, cada vez consumindo mais na vida dos pais até que eles se parecem com zombies amaldiçoados pela culpa e exaustão.

Nesse sentido, “Little Otik” trabalha o terror na vertente visual, mas também numa dimensão mais imaterial. É o pesadelo de ser pai, distorcido pela imaginação e pela fantasia, códigos de género servindo de prisma para melhor mostrar os recantos mais escuros da mente humana. Com o abandono do monstro, pois seus progenitores não têm coragem de matar o filho, será a menina que ocupa o lugar de mãe. Trata-se de um comentário abrasivo sobre a maturação feminina, mas também ajuda a posicionar Alžbětka como nossa guia por entre este inferno. Será a moça quem nos introduz ao conto-de-fadas original, despoletando interlúdios de animação mais tradicional. Também o ato vai decifrando a cena, concedendo-lhe a elegância da tragédia clássica.

Chegados ao fim da análise, falta-nos mencionar um último ponto. Na mesma medida em que “Conspirators of Pleasure” constitui a obsessão tátil de Jan Švankmajer elevada à plenitude, “Little Otik” é a mais extremada evolução do seu interesse em assuntos de fome e ingestão, digestão voraz e comida por modos gerais. Aqui, o surrealismo gástrico do autor atinge a sua derradeira forma, algo obsceno que ele mesmo atribui ao trauma de infância, quando se recusava a comer e teve de ser posto em programas para lhe forçar o alimento. Assim sendo, “Little Otik” afirma-se como o pesadelo do pai e do filho, um suturado no outro para formar um monstro mutante. Vê-lo é vislumbrar o âmago do artista, o olho num furacão de loucura.




Little Otik, em análise
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Movie title: Otesánek

Date published: 30 de April de 2023

Director(s): Jan Švankmajer

Actor(s): Veronika Zilková, Jan Hartl, Jaroslava Kretschmerová, Pavel Nový, Kristina Adamcová, Dagmar Stríbrná, Zdenek Kozák, Gustav Vondracek, Arnost Goldflam, Jitka Smutná

Genre: Terror, Comédia, Drama, 2000, 132 min.

  • Cláudio Alves - 90
90

CONCLUSÃO:

“Little Otik” problematiza a fome, o ser-se pai e ser menina quase mulher, usando a estrutura do conto-de-fadas enquanto referência. Transmutando o drama psicológico em terror grotesco, passa do surrealismo cru a uma quimera hibridizada com efeitos stop-motion. É uma obra-prima, sem dúvida, inquietante em jeito visceral. Mete nojo, mas faz refletir, assombrando o coração e o cérebro, fábrica de pesadelos e ansiedades.

O MELHOR: O stop-motion, pois claro. Sempre assim é no cinema de Jan Švankmajer. Otik é uma criação dos diabos, voracidade manifesta num corpo impossível.

O PIOR: A paranoia dos vizinhos representa outra vertente do pânico parental, mas, por vezes, parece supérfluo ao restante conto. Também a troca de protagonismo, dos Horáková para a pequena Alžbětka se faz sem grande jeito. Sentem-se as costuras, as mudanças forçadas, as margens de cada ato quais arestas vivas.

CA

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