"Sick of Myself" | © Oslo Pictures

IndieLisboa ’23 | Sick of Myself, em análise

Entre as várias sessões esgotadas do 20º IndieLisboa, “Sick of Myself” destacou-se visto que isso aconteceu com todas as exibições da obra. Chamado “Syk pike” no original norueguês, esta é uma comédia negra sobre extremos narcisistas e uma relação tóxica. Desde Cannes à secção Boca do Inferno do festival lisboeta, lá o filme de Kristoffer Borgli percorre o circuito e ganha fãs em todas as paragens. Não é de admirar, sendo este um dos trabalhos mais arrojados do ano, uma provocação sem vergonha e sem sanidade também.

Entre as redes sociais e uma cultura marcada pela autopromoção, a venda do ‘eu’ enquanto comodidade, vivemos numa era narcisista. Ou, pelo menos, assim parece quando contemplamos o trabalho de inúmeros artistas cujo olhar satírico nos direciona o olhar para um espelho distorcido. Falamos daqueles que entretêm no contexto de feira popular, mas depois horrorizam o inconsciente com suas visões monstruosas. “Sick of Myself” propõe semelhante efeito, só que, aqui, o grotesco visceral é sinónimo do entretenimento, ansiedade em jeito de automedicação tomando o lugar do gozo inocente.

Tudo começa num restaurante fino, onde Signe e Thomas jantam e se deliciam com o vinho mais caro do menu. Ele é um artista que se especializa em esculturas ready-made, reapropriando materiais roubados com especial ênfase na mobília de luxo. Nesta tarde nórdica, seu objetivo é a garrafa milionária, sendo que Thomas pede à namorada que vá fumar lá fora, preparando o cenário para uma escapatória furtiva. Signe assim faz e, ainda o cigarro não chegou a meio, quando o seu companheiro lá sai a correr com o tesouro nas mãos. O empregado vai a correr atrás dele, passando em frente à rapariga sem denotar a sua cumplicidade no esquema.

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© Oslo Pictures

Pensaríamos que isso aliviaria Signe, mas a sua cara denuncia outra reação. A possibilidade de confronto e prisão é dor menor quando comparado com a irritação de ser ignorada. Não há fado pior que passar despercebida. Mais tarde, em episódios singelos, vamo-nos acostumando à veia competitiva na dinâmica do casal, como todo o sucesso dele inspira inveja mais do que qualquer tenor de afeto. Obviamente, quando abre nova exposição de Thomas e ele passa todo o dia recebendo elogios, cada felicitação é como uma facada no coração para ela. Pois claro, a melhor maneira de reverter o transtorno é sabotar a ocasião, fingindo crise alérgica para inspirar pena.

Nem Kristoffer Borgli nem os seus atores sublinham estas tensões com demasiado afinco, deixando as realidades emergirem naturalmente do teatro social em que as personagens atuam. Contudo, só precisamos vislumbrar uma vez o sorriso falso de Kristine Kujath Thorp para entender toda a tempestade que flagela a alma dessa invejosa que tanta atenção cobiça. A montagem também muito faz para delinear a loucura, estilhaçando o quotidiano banal em crispações crescentes, sapos engolidos a seco manifestos nos ritmos da fita. A fotografia, longe de se perder em estéticas de Instagram, procura o naturalismo plástico que não varia nem quando nos perdemos na fantasia.

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Acontece que estamos sempre a vislumbrar devaneios na mente da protagonista, divergências do real mundano num estilo reminiscente do “Up de Sandbox” assinado por Irving Kershner nos anos 70. Na verdade, de tal modo nos sintonizamos à subjetividade de Signe e aos tons da sua história que, quando Thomas é entrevistado por uma revista de renome, logo adivinhamos alguma tática drástica no horizonte. Neste caso, o inferno devém de uma pesquisa Google, a notícia de um medicamento russo banido pela União Europeia por causa dos seus efeitos secundários violentos. A visita a um traficante aparvalhado e nova coleção de comprimidos são tudo o que é necessário.

Ao longo do restante filme, testemunhamos uma síndrome de Munchausen levada aos limites pelo narcisismo monstruoso, um organismo em guerra consigo mesmo para melhor conquistar o olhar piedoso dos que a rodeiam. A competição com Thomas é aberta e as mentiras acumulam-se, a audiência sujeita ao desconforto fazendo-se passar por humor negro. Somos esmifrados por um texto agressivo, ironias desnudas refratando uma sátira sedenta de sangue. Esse líquido escarlate vai jorrar, decerto. Vem das feridas abertas na cara de Signe, mutilações deliberadas que a tornam em celebridade impostora pelos media.

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© Oslo Pictures

Poder-se-ia acusar “Sick of Myself” de padecer dos mesmos superficialismos da sua anti-heroína. Confirmamos que algumas piadas tendem a cair no choque fácil, ou até na crueldade gratuita. Essa maldade parece-nos justificado quando incide sobre as figuras principais. Só que não se restringe a elas. Algumas presenças secundárias sofrem julgamentos sem razão, jogos de mesquinhez que ameaçam levar a fita além do precipício, caindo o Carmo e a Trindade num abismo misantrópico. É claro que, em reflexão, quiçá tentar encontrar ética neste texto seja como caçar gambozinos. Talvez devamos celebrar a amoralidade da comédia e ficar por aí.

Admite-se que a comédia vinga mais quando os cineastas a levam para uma zona no limiar do terror. “Sick of Myself” é body horror designado para a geração do selfie, invertendo os paradigmas usuais dessas obsessões. Ao invés de tentar ser o epíteto da beleza, Signe tenta ser a vítima suprassuma cuja infelicidade a coroa rainha do mundo. Ver como essas aspirações não refletem a fragilidade do corpo é a piada mais corante do argumento, inspirando um género de tragédia trocista em que o abuso próprio é uma mentira tornada verdade. Se o castelo de cartas não vem abaixo é porque Borgli mantém controlo sobre os tons entrelaçados da proposta e Thorp, essa milagreira, consegue ancorar Signe, fazê-la parecer horrivelmente credível.




Sick of Myself, em análise
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Movie title: Syk pike

Date published: 11 de May de 2023

Director(s): Kristoffer Borgli

Actor(s): Kristine Kujath Thorp, Eirik Saether, Fanny Vaager, Sarah Francesca Braenne, Fredrik Stenberg Ditlev-Simonsen, Steiner Klouman Hallert, Ingrid Vollan, Andrea Braein Hovig, Henrik Mestad, Anders Danielsen Lie

Genre: Comédia, Drama, Terror, 2022, 95 min.

  • Cláudio Alves - 73
73

CONCLUSÃO:

Signe é um monstro daqueles que fazem as delícias do cinéfilo. Lembram-se do filme “A Pior Pessoa do Mundo,” outra tragicomédia norueguesa? Esse título aplicar-se-ia bem a esta obra e sua protagonista, sendo amplamente justificado pela trama de uma mentirosa compulsiva em busca de atenção. É feito nojento e vil. Também é maravilhoso por essas mesmas vertentes malignas.

O MELHOR: O resvalar no body horror, a maquilhagem e seus efeitos sanguíneos.

O PIOR: A misantropia tem os seus limites e, por vezes, parece que o filme perde noção à crítica feita e acaba por cair nos mesmos vícios por si dissecados.

CA

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