Jan Roelfs | O cenógrafo barroco que nos mostra o futuro

Desde fantasias barrocas à Tóquio de 2029, o cenógrafo holandês Jan Roelfs já criou algumas das visões mais espetaculares do cinema moderno.

um z e dois zeros a zed and two noughts jan roelfs

um z e dois zeros a zed and two noughts jan roelfs
UM Z E DOIS ZEROS (1985) de Peter Greenaway

 

Muito antes de se tornar no cenógrafo de Ghost in the Shell, Jan Roelfs estudou arquitetura em Amsterdão. Como tal, ele não iniciou a sua carreira nem no cinema nem no teatro, mas sim num atelier de arquitetura. Foi aí que primeiro entrou em contacto com o mundo da sétima arte, quando um projeto cinematográfico pediu auxílio ao estúdio para a construção dos seus cenários. O filme em questão foi Het bittere kruid de 1985. Jan Roelfs não foi cenógrafo do projeto, tendo estado ligado mais à parte técnica da sua execução, mas travou conhecimento com o produtor Kees Kasander que, no mesmo ano, o apresentou ao homem que ia mudar a sua vida, o realizador avant-garde inglês Peter Greenaway.

 

drowning by numbers jan roelfs maridos à água

drowning by numbers jan roelfs maridos à água
MARIDOS À ÁGUA (1988) de Peter Greenaway

 

Unidos pelo amor de arquitetura e História da pintura holandesa, os dois homens deram logo início a uma colaboração artística que iria durar quase uma década cheia de obras-primas. O seu primeiro projeto foi Um Z e Dois Zeros, uma bizarra exploração sobre ideias de simetria cósmica e decomposição animal que Greenaway edificou como uma sequência de grotescos tableaux rigidamente inspirados na pintura dos grandes mestres da pintura seiscentista como Vermeer. Esta fixação com o barroco enquanto estética e modo de pensamento é uma constante na obra do realizador, mas nunca foi melhor traduzida espacialmente do que nas criações da equipa de cenógrafos composta por Jan Roelfs e Ben Van Os. Fortemente teatrais e feitos para serem capturados em elaborados planos gerais geometricamente compostos, estes cenários têm pouco de natural, mas são pequenos milagres cinematográficos no seu fausto e exagero.

 

jan roelfs O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante Dela

jan roelfs O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante Dela

jan roelfs O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante Dela

jan roelfs O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante Dela

jan roelfs O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante Dela
O COZINHEIRO, O LADRÃO, A SUA MULHER E O AMANTE DELA (1989) de Peter Greenaway

 

Tanto Um Z e Dois Zeros como Maridos à Água, estreado em 1988, misturam as ideias barrocas do realizador com um relativo semblante de realidade, nem que seja pela sua ocasional utilização de espaços exteriores. Em 1989, Roelfs e Greenaway assinaram um filme que corta qualquer relação com o real e foi completamente filmado nos confins artificiais de um estúdio. Referimo-nos a O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante Dela, uma macabra fantasia canibal que copia a estrutura sanguinária das histórias de vingança populares na Inglaterra do início do século XVII. Em termos cenográficos, estamos perante um festim visual do mais alto nível com todo o filme a parecer uma pintura viva onde cada cenário é codificado pelo uso de certas cores e detalhes arquitetónicos cuidadosamente escolhidos. Para o estilo geral da obra, Roelfs queria mesmo referenciar o interior de catedrais, subvertendo a arquitetura sacra até ela se tornar num templo de podridão.

 

orlando jan roelfs sally potter

orlando jan roelfs sally potter

orlando jan roelfs sally potter

orlando jan roelfs sally potter

orlando jan roelfs sally potter
ORLANDO (1992) de Sally Potter

 

Foi graças às loucuras barrocas de Peter Greenaway, que Roelfs e Van Os foram contactados pela realizadora Sally Potter que os convidou a desenhar os cenários de Orlando, baseado no romance de Virginia Woolf. A narrativa do filme começa durante os últimos anos de Isabel I e prolonga-se até à última década do século XX, engloba uma aventura no Médio Oriente e até tem direito a um banquete feito num lago congelado durante o reinado de Jaime I de Inglaterra. Pelos seus esforços, os dois cenógrafos foram nomeados para o Óscar. Infelizmente, nenhum dos seus gloriosos trabalhos para Greenaway recebeu tal reconhecimento, provavelmente pela natureza transgressiva e formalmente provocatória do seu cinema. Nos anos 90, os cenógrafos criaram, para Greenaway, os espaços de Os Livros de Próspero, uma adaptação livre de A Tempestade de William Shakespeare, e O Bebé de Macon, um dos mais cruéis filmes do realizador, mas um espetáculo de teatralidade barroca tão bela que se torna monstruosa.

 

os livros de próspero jan roelfs peter greenaway

os livros de próspero jan roelfs peter greenaway

os livros de próspero jan roelfs peter greenaway
OS LIVROS DE PRÓSPERO (1991) de Peter Greenaway

 

Lê Também: Top 2016 | Os 10 melhores guarda-roupas do ano

 

o bebe de macon peter greenaway jan roelfs

o bebe de macon peter greenaway jan roelfs

o bebe de macon peter greenaway jan roelfs
O BEBÉ DE MACON (1993) de Peter Greenaway

 

O Bebé de Macon marcou a última vez que Jan Roelfs iria trabalhar com Peter Greenaway e, de certo modo, também foi a última vez que o cenógrafo pode brincar com os excessos barroquistas que caracterizaram tanta da sua carreira. Nos anos seguintes a esse filme de 1993, Roelfs deu início a uma carreira em Hollywood que incluiu tantas narrativas modernas como de época. As Mulherzinhas de Gillian Armstrong foi mais um triunfo artístico para Roelfs mas o seu naturalismo modesto está bem longe dos excessos de Greenaway. Em 1997, ele voltaria a um registo estilizado e teatral com Gattaca. Apesar de um argumento apoiado em medos contemporâneos e comentário social, o filme de ficção-científica de Andrew Niccol detém uma qualidade levemente alegórica, pelo que o realismo não era uma grande preocupação. Na verdade, devido a um orçamento muito limitado, Roelfs usou inúmeros edifícios de Los Angeles como base para a sua edificação de um futuro austero e, por vezes, interveio em espaços reais para os tornar alienantes e estranhos graças à repetição de elementos minimalistas, mas não muito dispendiosos.

 

gattaca jan roelfs

gattaca jan roelfs

gattaca jan roelfs
GATTACA (1997) de Andrew Niccol

 

Gattaca valeu a Roelfs outra indicação para o Óscar, mas isso não se traduziu em grandes oportunidades em Hollywood. Pelo contrário, Roelfs foi trabalhando em dramas contemporâneos de baixo orçamento até que, já no século XXI, ele foi contratado por Oliver Stone para trazer ao grande ecrã as maravilhas da Antiguidade Clássica em Alexandre. Com sequências passadas na biblioteca de Alexandria e nos Jardins Suspensos da Babilónia, o filme teve um orçamento astronómico, um quarto do qual foi dado à cenografia. Apesar disso, Roelfs não teve muita liberdade criativa, sendo que todo o seu trabalho estava sob o escrutínio de uma equipa de doze professores de Oxford que Oliver Stone tinha convidado para serem consultores históricos do projeto. Como muitos sabem, Alexandre foi um desastre crítico e de bilheteiras, mas Stone parece ter gostado de Roelfs pois, em 2006, foi ele o cenógrafo que o realizador escolheu para recriar as ruínas fumegantes das Torres Gémeas em World Trade Center. Para Jan Roelfs, que se mudou para Nova Iorque nos anos 90 e estava na cidade a 11 de Setembro de 2001, a autenticidade dos cenários desta história era algo imperativo e profundamente pessoal.

 

alexandre jan roelfs

alexandre jan roelfs
ALEXANDRE (2004) de Oliver Stone

 

Lê Ainda: Os deslumbrantes figurinos de A Bela e o Monstro

 

47 ronin jan roelfs

47 ronin jan roelfs
47 RONIN – A GRANDE BATALHA SAMURAI (2013) de Carl Rinsch

 

Depois dos dois filmes com Oliver Stone, Roelfs entrou, mais uma vez, numa fase da sua carreira maioritariamente caracterizada por narrativas contemporâneas sem grande ambição estética. Em 2013 isso mudou com 47 Ronin – A Grande Batalha Samurai, um grande blockbuster típico de Hollywood sobre uma história tradicional japonesa. Apesar da sua ligação à cultura nipónica, nem um segundo do filme foi gravado nesse país. Na verdade, Roelfs construiu todos os espaços cénicos no interior dos Pinewood Studios em Inglaterra. Para esse efeito, Jan Roelfs viajou até ao Japão e estudou a sua arquitetura histórica, mas, no final, apenas usou a sua pesquisa como uma base sobre a qual deixou a sua imaginação florescer e dar lugar a fantasias mirabolantes e belíssimas.

 

ghost in the shell jan roelfs

ghost in the shell jan roelfs

ghost in the shell jan roelfs
GHOST IN THE SHELL – AGENTE DO FUTURO (2017) de Rupert Sanders

 

Essa não seria a última vez que Jan Roelfs iria criar visões fantasiosas do Japão para um grande filme de ação americano. Ghost in the Shell – Agente do Futuro é baseado num famoso anime de 1995 que, por sua vez, é uma adaptação de um manga do final dos anos 80 cuja temática está intrinsecamente ligada ao modo como, enquanto uma sociedade e uma cultura, o Japão se relaciona com a tecnologia. Como tal, Roelfs tinha não só uma complicada carga cultural a pesar sobre os seus ombros, como também as imagens já concebidas para ilustrar este mundo futurista. No final, Jan Roelfs tem aqui mais um triunfo cenográfico, que respeita as estéticas das versões passadas desta história, ao mesmo tempo que representa um feito artístico de valor independente. De certo modo, na sua visão de um futuro próximo, no seu fausto visual cheio de detalhes e na sua teatralidade nipónica, este projeto representa a apoteose da carreira deste genial cenógrafo. Só faltava mesmo um toque de barroco.

 

ghost in the shell jan roelfs

ghost in the shell jan roelfs

ghost in the shell jan roelfs
GHOST IN THE SHELL – AGENTE DO FUTURO (2017) de Rupert Sanders

 

Que tipo de projetos estarão no futuro de Jan Roelfs? Será que ele vai voltar aos excessos criativos do cinema de autor que marcaram o início da sua carreira, ou os blockbusters de ação são agora a norma da sua filmografia? Apenas o tempo dirá.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *