“Justa” — Análise
A ‘cineasta mais livre do cinema português’ regressa às salas de cinema com “Justa”, um filme que arde devagar, entre a dor dos incêndios de 2017, a cegueira de Betty Faria e o olhar poético e brutal de quem ainda acredita que o cinema é um gesto de resistência.
Teresa Villaverde, quase sempre filma para fazer perguntas que ninguém tem coragem de responder. “Justa” é uma dessas perguntas. Daquelas que ficam a ecoar, como o som de árvores a crepitar depois do fogo, quando já não há chamas, só cinza e memória. É um filme que não grita, não explica, não moraliza, simplesmente existe, como a dor. E é talvez por isso que nos persegue. Villaverde, que há muito faz filmes como quem escreve cartas a fantasmas, regressa com uma obra que nasce da tragédia dos incêndios de 2017, mas que não se detém na crónica do desastre. O fogo aqui é interior, é simbólico, é a ferida invisível que as personagens carregam quando tudo o que restava lhes foi queimado: as casas, os maridos, os filhos, os pais, as árvores, o futuro. “Justa” não é sobre os que foram mas os que ficaram. Sobre o que resta depois do fim.

A cegueira que faz ver
A lenda do cinema e da televisão brasileira Betty Faria, 84 anos de pura força, interpreta em “Justa” uma mulher cega que sobreviveu ao inferno e à culpa. O marido morreu no carro, derretido, e ela ficou para testemunhar o horror. A sua cegueira é simbólica, quase mística: é a metáfora perfeita para o país que não quis ver o que ardeu. E é através dela que Teresa Villaverde nos obriga a olhar, literalmente, o que não queremos ver. O milagre é que Betty não interpreta: habita. Com meio século de carreira e um método que se sente nos ossos, faz do silêncio uma forma de expressão. É uma presença que vibra no ecrã, como uma sobrevivente de outra era, não a das chamas, mas a do cinema em que ainda se acreditava em emoções sem filtro, sem ironia, sem artifício.
O incêndio interior
Nada acontece em “Justa”, e no entanto tudo está em combustão. As personagens não agem, lembram-se. Não se movem, resistem. O filme não reconstrói o passado, mas escava o presente. Villaverde rasga o formato do drama social e transforma-o numa espécie de elegia visual, em que a dor é filmada como matéria viva, e o tempo parece suspenso, entre a culpa e a ternura, entre o trauma e a redenção. É um cinema que não se dobra à lógica do “acontecimento”, que rejeita o espetáculo e a explicação. “Justa” é o oposto da narrativa clássica: um filme que prefere o silêncio ao diálogo, o gesto ao enredo, o rosto à catástrofe. É um filme sem “história” no sentido tradicional, mas com uma verdade emocional absoluta. E há poucos cineastas que filmem o invisível como Teresa Villaverde.
As vozes, os corpos, os fantasmas
Entre os intérpretes, de “Justa” há surpresas e revelações. Filomena Cautela, que o país conhece como apresentadora de televisão, surpreende pela contenção e pela gravidade. A médica-psicóloga que interpreta é o contraponto racional a um universo emocional em ruína, um papel em que menos é mais, e onde a actriz se revela com uma intensidade serena e rara. E depois há José Ricardo Vidal. Queimado num acidente de carro aos 19 anos, sobreviveu ao seu próprio fogo. No filme, não é vítima nem símbolo, é corpo e presença. Villaverde filmou-o sem filtros, sem maquilhagem, sem piedade, mas com respeito. E esse respeito sente-se, em cada plano, em cada silêncio. A câmara, manuseada com a precisão e o pudor de quem sabe que a dor não se encena, parece respirar junto das personagens. É um cinema táctil, feito de luz, sombra e respiração. Como se cada plano fosse uma tentativa de cura.

Teresa Villaverde: a radical da ternura
Há ainda qualquer coisa de profundamente comovente no gesto de Teresa Villaverde. Numa era em que tudo é ruído, e espalhafato mediático, ela escolhe o silêncio. Em que tudo é imagem, ela filma a ausência. O seu cinema é de uma radicalidade pura, não por ser difícil, mas por ser humano. Desde “Três Irmãos” até “Colo”, passando pelo seminal “Os Mutantes”, Villaverde tem construído uma filmografia onde as margens são o centro. As crianças perdidas, os jovens revoltados, os pais ausentes, as mulheres feridas, todos encontram nos seus filmes um espaço de escuta, uma espécie de refúgio. E estão aqui também nas maravilhosas interpretações dos dois jovens Madalena Cunha em Justa e de Alexandre Baptista em Simão. Em “Justa”, essa ternura resiste também ao fogo. É um filme que, como os eucaliptos da história, volta a crescer para poder arder de novo. Mas em vez de cinza, deixa-nos imagens que ficam a arder na memória.

Ver com o coração
Há quem diga que o cinema de Teresa Villaverde é difícil. Eu diria que é apenas verdadeiro. Não nos pede paciência: pede empatia. É um cinema que exige que estejamos presentes, que olhemos, que sintamos, que suportemos o desconforto de ver o que a vida real tenta esconder. “Justa” é, no fundo, um filme sobre ver sem olhos. Sobre sentir sem palavras. Sobre viver depois de se ter morrido um pouco. E é também um gesto de fé num cinema que ainda acredita nas pessoas. Se o mundo fosse justo, “Justa” estaria em todas as salas do país. Mas como não é, teremos de nos contentar com as que restam e, dentro delas, deixar-nos incendiar outra vez.
JVM
Justa — Análise
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José Vieira Mendes - 80
Conclusão:
“Justa” é cinema de resistência da arte e da emoção. Um filme que não pede aplausos, pede presença. Teresa Villaverde continua fiel à sua linguagem única: feita de dor, ternura e uma obstinação em filmar o invisível. Ao contrário da maioria do cinema contemporâneo, que vive da pressa e da explicação, “Justa” obriga-nos a abrandar, a escutar, a ver com o coração. É um gesto radical de confiança na sensibilidade do espectador. Um filme que queima devagar, mas ilumina muito depois de o ecrã escurecer.
Overall
80User Review
( votes)Pros
O melhor: Betty Faria, transforma a cegueira em luz interior; a forma como Teresa Villaverde filma o trauma sem espetáculo, dando-lhe uma dimensão íntima e quase espiritual; a fotografia e o som num trabalho sensorial e rigoroso que cria verdadeira imersão emocional.
Cons
O pior: A dureza emocional e o ritmo lento podem afastar espectadores menos disponíveis para o silêncio; a estrutura pouco narrativa, quase abstracta, exige paciência e entrega, quase como um ato de fé.


