Kimi, em análise
“Kimi” é um pitoresco estudo de caso acerca dos perigos dos dispositivos inteligentes, que consegue “hackear” a privacidade da nossa mente com uma elevada nota artística e um contido fervor emocional. Soderbergh eletriza Zoë Kravitz e transforma mais um dos seus filmes “lo-fi” numa pérolazinha declarativa.
Pois é, Steven Soderbergh está de volta às produções cinematográficas para gáudio dos fãs, e nosso, obviamente, que não esquecemos a sua inventiva proposta audiovisual de autor. Os “Ocean´s Eleven” vem-nos invariavelmente à memória, mas existem outras fitas impactantes que o consagraram na carpete vermelha de Hollywood: primeiro com uma nomeação para melhor realizador em “Erin Brockovich”, e depois com um merecido Óscar em “Traffic” na mesma cerimónia de 2001. Mas desde 2013 que Soderbergh tem andado divorciado do meio, tendo encontrado algum conforto nas produções televisivas, onde tem conseguido explanar a sua liberdade artística sem desvirtuar a sua imagem em prol da agenda economicista dos grandes estúdios de cinema. Aliás, aquando da sua retirada, Soderbergh teceu duras críticas à indústria cinematográfica, afirmando sem papas na língua que era “absolutamente horrível como as pessoas com dinheiro podiam traquejar na cozinha”, em bom português corriqueiro. Pois bem, de 2017 a esta parte, Soderbergh parece ter sentido saudades do grande formato com meia dúzia de longas-metragens bem cotadas, contudo “Kimi” é um regresso às suas raízes mais noir e experimentais, misturando Hitchcock e marimbas na nova “Silicon Valley” dos EUA, Seattle, num evidente aceno de censura à gigante tecnológica Amazon, com sede no mesmo local. Isto porque, “Kimi” será provavelmente a representação ficcional mais realista e palpável de como as “Siris e “Alexas” deste mundo poderão constituir uma séria ameaça à privacidade e segurança individual, embora este pequeno ensaio alucinante de Soderbergh não tente propriamente demonizar as assistentes virtuais, mas antes a forma como são instrumentalizadas por estes conglomerados empresariais.
“Kimi” é mais uma a juntar-se à lista, ficcionalmente, claro, cujo software é propriedade de uma influente corporação de alta tecnologia denominada Amygdala. E a partir do instante em que começam a rolar os primeiros frames da filmagem “artesanal” de Soderbergh, enquanto o CEO da dita empresa, engravatado até às calças do pijama matinal, concede uma entrevista caseira por “live stream” sobre os méritos do seu produto face à concorrência, sabemos logo que teremos pela frente o seu convite à experiência voyeurista de assalto aos sentidos. Ali mesmo, a câmera devassante de Soderbergh começa a mostrar ao que vem, seguindo o Sr. Bradley Hasling (Derek DelGaudio) pelos cantos da escadaria alcatifada até ao quarto do seu filho, altura em que o retilíneo enredo de David Koepp (Parque Jurássico) aproveita para lançar o primeiro de uns quantos ganchos de suspense eficientes, que nos agarram à intriga com um telefonema laconicamente suspeito. Mas o alvo primordial da sua lente biográfica é Kravitz (Angela) e todo o esquisito universo que gira à sua volta, porque, basicamente, o filme é sobre ela. Enclausurada por conta de um transtorno de ansiedade (agorafobia), no seu luxuoso loft estilo nova-iorquino com tijolo exposto nas paredes e todo aquele décor muito “kitsch”, Angela é infecciosamente magnética ao olhar, tanto que Soderbergh faz questão de perseguir o seu carisma naïf agraciado de uma timidez sexy, emoldurando cada expressão sua num ampliado e consecutivo “flirt” de intimidade imagética.
Com a rebeldia de uma Wanda Stuart e um guarda-roupa a fazer pandã, até aqui, Soderbergh, usa a ratice da psicologia das cores para não termos a mínima hipótese de esquecermos a persona excêntrica de Angela, que acima de qualquer artificio cénico, é o reflexo dos 26,9% de americanos que sofrem anualmente de algum tipo de perturbação mental incapacitante, algo que é tratado pelo argumento de Koepp com alguma contenção e cuidado. E enquanto Angela vai vivendo amedrontada pelos mil e um fatores incontroláveis do mundo externo, ao mesmo ritmo que a “Ocitoxina” de Billie Ellish a faz pedalar furiosamente na bicicleta de spinning os seus ensejos de normalidade e aceitação, somente contemplados à distância de mais uma intenção de encontro social fracassada, é inadvertidamente na zona de conforto que surge o input de mudança, aquilo que o filósofo Kant denominou de imperativo categórico. Também aqui, Soderbergh volta a fazer das suas, como de resto é seu apanágio a sonoridade ser o primeiro estímulo da cena, cortando momentaneamente o som para o afunilar em seguida, como se estivéssemos com os auscultadores de Angela a ouvir os streams que ela modera dos erros linguísticos resultantes das interações das Kimis com os seus utilizadores, altura em que somos, tal como ela, cúmplices de uma gravação sinistra e perturbadora.
Doravante, Angela canaliza todos os esforços para denunciar as suspeitas da ocorrência de um alegado crime às suas chefias que, obviamente, tentam desencorajá-la e ludibriá-la para obterem as provas comprometedoras na sua posse. Deveras, a narrativa de Koepp é astuta em identificar a opacidade burocrática e o modus operandi de práticas duvidosas por parte destas empresas, invocando mesmo um caso idêntico que envolveu uma Amazon Echo no Arkansas, e sentou a gigante tecnológica de Bezos no banco dos réus. Tudo isto poderá soar à mesma lenga-lenga conspirativa do costume, mas Koepp até é clarividente ao adicionar mais algumas camadas de realismo, esticando a sua retórica pelo filtro dramático de alguém que já sofre de um trauma relacionável com o da vítima, que Kravitz transmite pelo olhar de Angela com uma incisiva vulnerabilidade. Além do mais, insere todos estes celeumas à luz do nosso contexto atual de Pandemia, relacionando os confinamentos e o teletrabalho com a insanável dependência dos dispositivos móveis e consequente virtualização das relações humanas, que no caso específico de Angela passaram a ser mais descartáveis em função do seu instinto de sobrevivência, o que não deixa de ser curioso, já que tanto Soderbergh como Kravitz possuem uma certa inclinação “tecnofóbica”.
E a partir do inadiável momento em que Angela é forçada a abandonar o ambiente controlado do seu apartamento, também Soderbergh aproveita para “descontrolar-se” engenhosamente com a sua câmera de mão, fustigando o monstruoso esforço de Angela em confrontar aqueles seus pavores mais angustiantes no caminho até à sede da sua entidade patronal, aonde uma condescendente Rita Wilson (Natalie Chowdhury) a espera para interrogatório. Sempre no seu encalço, a lente de Soderbergh parece uma sonda ligada à mente de Angela a reproduzir em vídeo toda a paranóia dos seus pensamentos, focando a sua rigidez de movimentos a partir dos ângulos mais bizarros com os zumbidos mais adstringentes. De facto, toda a feitiçaria visual de Soderbergh consegue induzir-nos numa espécie de transe psicotrópico acelerado, num nervoso miudinho crescente com a fuga desenfreada de Angela dos seus captores por tubos de corredores infindáveis, que Soderbergh faz parecer como se estivéssemos dentro de um labirinto claustrofóbico. Mas é em campo aberto que a sua verve cinematográfica atinge o pináculo do brilhantismo estético, numa fotografia panorâmica aérea que capta a diminuta Angela a correr pela sua vida numa calçada colorida como se estivesse a mover peões num tabuleiro de xadrez infinito. Até quando Angela, ainda grogue no interior de uma carrinha, consegue um vislumbre do exterior por meio de uma extasiante tricotagem de fotogramas sobrepostos indutores de uma sensação extracorpórea. Genial!
Claro, como seria de esperar, o último terço da fita é bastante movimentado, apressando-se numa estrada direta para um desfecho por muitos considerado absurdamente irrealista ou preguiçosamente expectável. Na nossa ótica, quem está familiarizado com o humor satírico implícito nos trabalhos de Soderbegh, será capaz de apreciar a improvável mas ridiculamente eficaz conjugação de idiotice, gozo e lógica dentro de parâmetros minimamente plausíveis, como se fosse aquela derradeira piada anti-clichés de tudo o que liga as pessoas aos seus dispositivos inteligentes. Isto é Soderbergh a vaguear pelas suas realidades inconvenientes com uma veia artística reivindicante, que vale mais pelo passeio do que pela complexidade da história. “KIMI, Toca Sabotage”…
“Kimi” é uma das novas propostas em cartaz no novo alinhamento de conteúdos da HBO, que já pode ser visionado na recém estreada plataforma da HBO Max Portugal.
Miguel Simão
Kimi | Em Análise
Movie title: Kimi (HBO MAX Portugal)
Movie description: Uma profissional da tecnologia com agorafobia descobre a gravação de um crime violento e tenta denunciá-lo aos seus superiores. Para conseguir que o crime seja investigado, ela percebe que talvez tenha de deixar o seu apartamento.
Country: EUA
Duration: 1h29min
Author: Miguel Simão
Director(s): Steven Soderbergh
Actor(s): Zoë Kravitz, Rita Wilson, Erika Christensen
Genre: Crime, Drama, Suspense
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Miguel Simão - 80
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Manuel São Bento - 50
CONCLUSÃO
“Kimi” um é sofisticado e estilizado ensaio cinematográfico, que no fundo satiriza com pujança e originalidade este mundo esquizofrénico em que vivemos, acicatando a discussão em torno de temas que estão muito em voga como os perigos da tecnologia de consumo, condutas empresariais duvidosas, o contexto pandémico ou o movimento “metoo”. Soderbergh impressiona com uma filmagem “in your face” cheia de personalidade e vigor, que retira de Kravitz resmas de emoções genuínas impactantes. É um filme audacioso na mensagem que passa, e meritório na forma como nos deixa na borda do assento durante hora e meia sem darmos por ela…
Pros
- Zoë Kravitz encanta
- Cinematografia de Soderbergh
- Edição de imagem/som
- Sentido humorístico
Cons
- Enredo joga pelo seguro
- Algumas derivações desnecessárias
- Desfecho sujeito a gosto pessoal