Venice Sala Web | La Soledad, em análise

La Soledad é o título e principal cenário do novo filme de Jorge Thielen Armand, onde o jovem cineasta pinta um retrato da Venezuela através do prisma de um comovente drama familiar. Tal como todos os filmes presentes no Venice Sala Web, esta obra foi exibida no Festival Internacional de Veneza e está, de momento, disponível no Festival Scope.

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Quando se discutem certos projetos, muitas vezes cai-se no erro de valorizar mais o processo que levou ao filme do que o objeto cinematográfico em si. La Soledad, uma obra do jovem cineasta venezuelano Jorge Thielen Armand que integra o projeto Biennale College, é um caso em que esse perigo é bem presente, sendo que o desenvolvimento da ideia base para a sua criação e seus métodos de filmagem são de imenso fascínio. De modo sumário, Armand utilizou a sua própria vida e história familiar como ponto de partida, filmando quase todo o projeto em La Soledad, uma casa num dos bairros mais ricos de Caracas que em tempos foi habitada pelos seus bisavós, mas que, há quase duas décadas, foi abandonado e deixado aos cuidados da serviçal que tinha tratado dos anteriores residentes até à sua morte. José, o neto dessa mulher, foi um amigo de infância do realizador e é aqui o protagonista de uma trama onde a sua vida é dramatizada e misturada com elementos de ficção e fantástico. A família de José interpreta-se a si mesma e foi tudo filmado no seu ambiente doméstico. Na verdade, até a família do realizador tem uma certa presença no filme, como insensíveis ricos sem uma gota de empatia nos seus corpos.

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Esta proposta, com uns certos ares de neorrealismo e claras intenções de ser uma acutilante crítica social, desdobra-se em dois planos de existência e registos diferentes, um situado na esfera doméstica e outro no exterior, nas ruas e duras realidades da Venezuela atual. A maior parte do filme, como o seu título indica, desenrola-se dentro das ruínas de La Soledad, onde Armand captura a vida da família com uma soberba intimidade e grandes doses de empatia. Os não-atores conseguem um registo de surpreendente naturalismo, sem os usuais momentos de insegurança frente às câmaras que marcam tantos projetos com este género de proposta.

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Contudo, mais importante ainda que a convincente dinâmica familiar é a relação entre estas pessoas e o espaço que habitam. A mise-en-scène de Armand dá sempre relevo à fisicalidade do espaço, muitas vezes com a câmara a desviar-se da presença humana para se luxuriar na beleza decadente das paredes com o estuco a cair, os tetos degradados e o ferro forjado ferrugento que sugere o esplendor do passado, agora apenas presente como uma memória meio esquecida. Neste espaço, onde o passado e o presente estão em irrevogável comunhão, os espíritos que protagonizam as crenças e histórias da avó de José ganham vida em momentos de realismo mágico, onde o som, em particular, se desfragmenta em fantasmagórica abstração.

Essas histórias ancestrais, levam mesmo a que José procure pelas paredes da casa um tesouro que ele acredita estar lá escondido. Com um detetor de metais, ele busca as moedas de ouro protegidas pelos espectros de antigos escravos, no desespero de salvar a sua família em perigo de despejo. É nessa angústia que a insularidade do paraíso doméstico se encontra com a realidade amarga da Venezuela contemporânea, onde faz sentido que as pessoas se percam em histórias de fantasmas como fuga à miséria atual. Os ricos, que no caso dos patrões da mulher de José apenas são ouvidos e nunca vistos, são presenças distantes e desinteressadas nos problemas de quem tem menos posses. Mas as ruas de Caracas bem mostram o desespero da crise social e económica, e Armand filma por várias vezes mercearias e farmácias esvaziadas, meros espectros do que foram noutros tempos. Como é possível não acreditar em fantasmas, quando se vive num país fantasma?

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No meio deste pesadelo contemporâneo, onde sequestros são aparentemente algo normal se acreditarmos num amigo de José, La Soledad acaba por ser um oásis e também uma espécie de microcosmos que funciona como uma representação de toda a Venezuela. Essa ligação à casa é tão forte, tanto para as personagens como para a própria câmara, que quando se corta o cordão umbilical entre a família e La Soledad, parece que estamos noutra realidade, como que num sonho. O final, marcado por uma visita à praia, há muito desejada pela filha do protagonista, é pontuado por um plano de José à deriva nas águas azuis do oceano, perdido no meio de algo indefinido, uma imagem quase onírica. Mas ainda há que mencionar um epílogo que retorna ao registo que abriu o filme com vídeos domésticos da família do cineasta, onde se volta a sublinhar muito do conteúdo temático do filme, nomeadamente, a componente pessoal, a sua base em realidade e sua sonhadora perspetiva presa a glórias de um passado perdido nas águas do tempo.

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Em conclusão, La Soledad é um filme de imensa ambição que, de modo admiravelmente seguro, consegue atingir as suas intenções. É um retrato da atualidade que, graças ao foco na miniatura doméstica, nunca se torna num conjunto de símbolos e exposição didática, e que, graças à casa e sua história, ganha uma dimensão quase mística. Há algo de comovente, real e irreal em toda a experiência, o que faz de La Soledad um dos mais originais e essenciais filmes do Venice Sala Web. A não perder!

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O MELHOR: A sugestão do mundo dos espíritos através da sonoplastia.

O PIOR: Alguma letargia típica deste tipo de cinema, mas nada de demasiado incómodo ou que prejudique em demasia a experiência global de La Soledad.


 

Título Original: La Soledad
Realizador:  Jorge Thielen Armand
Elenco: José Dolores López, Marley Alvillaes López, Adrializ López, Jorge R. Thielen
Festival Scope | Drama | 2016 | 90 min

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CA

 

One thought on “Venice Sala Web | La Soledad, em análise

  • An excellent and neat article Claudio Alves wrote about “La Soledad” the film Jorge Thielen Armand directed and presented at the 73 Film Festival in Venice 2016.
    MD

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