"Armageddon Time" | © Universal Pictures

LEFFEST ’22 | Armageddon Time, em análise

Refletindo sobre a sua infância, James Gray assina o filme mais pessoal numa carreira idiossincrática e muitas vezes incompreendida. Em “Armageddon Time,” fracassos de juventude arrogante combinam com estudos de assimilação na América dos anos 80, um cocktail poderoso tornado mais forte ainda por uma cornucópia de grandes atores – Anne Hathaway, Jeremy Strong e Anthony Hopkins destacam-se. Este filme teve estreia mundial no Festival de Cannes, onde integrou a Competição Oficial e agora passa Fora de Competição no 16º Lisbon & Sintra Film Festival.

É muito raro contar histórias de fracasso e culpa. Ou, pelo menos, esses contos são incomuns quando fogem à estruturação moralista da tragédia. Até no cinema de autor, há relutância em dramatizar o erro mundano, esse mal banal que nos afeta a todos e faz de nós criaturas imperfeitas tão diferentes dos heróis que gostaríamos de ser. No gesto da autorreflexão, quando a tela se torna em janela da memória, estamos habituados a pressentir o filtro da nostalgia, saborear o sabor adocicado do facto idealizado. Realidade pura e dura é amarga, a confusão da juventude não sabe bem e deixa mau gosto na boca.

Em “Armageddon Time,” James Gray vai contra a norma, propondo um cocktail que contradiz a norma nostálgica e faz muito para que esse mau sabor persista. Estamos perante um projeto que, à primeira vista, é como tantos outros exercícios de autobiografia ficcionada. Já vimos muito deste tipo, quer seja o “Belfast” de Kenneth Branagh ou “Os Fabelman” de Spielberg, a “Roma” de Cuarón ou “As Mulheres do Século XX” que tanto nos disseram sobre o passado de Mike Mills. Em variáveis doses e diferentes graus de qualidade, todos esses filmes apelaram ao sentimentalismo da retrospetiva adulta sobre a infância.

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© Universal Pictures

Há calor no seu engenho que, quando disposto em jogos de comparação, faz com que “Armageddon Time” se sinta como um balde de água fria despejado sobre a cabeça do espetador. Gray tem pouca paciência para confortos vácuos, preferindo um olhar direto que quiçá peca pela brutidão de propósito. A intenção é sempre boa, mas a execução às vezes descarrila em movimento abrupto ou catarse negada, em limitações dramatúrgicas que frustram mais do que elucidam. Dito isso, o estado de intransigência mesclada com confusão não é acidente do autor trapalhão. Pelo contrário, o fenómeno marca afinidade entre quem vê o filme e a personagem que o vive.

Ele é James Gray rebatizado com o nome de Paul Graff, um adolescente rebelde na Nova Iorque de 1980, quando a América se precipitava sobre a ravina do Conservadorismo e Reagan subia ao poder. No seio de uma família judaica com origens ucranianas, Paul está naquela idade onde se sente agrilhoado pelas expetativas de adultos que ainda o veem como miúdo. Contudo, nada no seu comportamento indica maturidade, prodígio, ou o nível de responsabilidade que inspiraria um tratamento diferente. Ele é insatisfação juvenil personificada, o filho mais novo de um casal de classe-média com aspirações sociais e um desejo implícito por assimilação cultural.

Paul não tem respeito por qualquer membro da família à exceção do seu adorado avô materno cujas histórias transbordam com a dor acumulada ao longo de gerações, a maravilha de um contador de histórias e a autoridade de um mentor benevolente. Pelo pai canalizador, o miúdo só tem desdém, quando não tem medo da sua fúria de cinto em punho. A mãe é figura mais ambígua, sua herança familiar denotando um poder económico que o jovem sente e abusa, sentindo-se rico em comparação com os colegas. O irmão mais velho é uma não-entidade, aquela clássica figura sem graça, limitado pela perspetiva do menino mimado cheio de ressentimentos.

Escusado será dizer que Gray não lima as arestas da sua versão juvenil, brilhando um holofote sobre todo o defeito sem, no entanto, forçar o julgamento perante o espetador. Todo o texto de “Armageddon Time” depende da observação de dinâmicas interpessoais que se estendem além da moldura narrativa. Estamos sempre presos à subjetividade de Paul, mas a câmara ocasionalmente libera-se da imaturidade dele, talvez tomando a visão do adulto cuja memória estamos a ver. Manifesta-se isso em vislumbres de interioridade alheia, como a interação entre a mãe e o avô na solitude da cozinha ou o olhar transtornado de quem pondera a morte do seu amado patriarca.

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© Universal Pictures

Trata-se, portanto, de um filme sobre as limitações do jovem, da confusão que é crescer e aperceber-se que a vida adulta não é somente uma questão de crescer em altura. Mais do que tudo, “Armageddon Time” debruça-se sobre questões de privilégio e preconceito, explorando o processo pelo qual, ao longo de uns quantos meses invernais, Paul se perde na confusão de um mundo intrinsecamente injusto. Johnny Davis, um colega Afro-Americano da escola torna-se figura central nesta autodescoberta, mas sua trajetória narrativa não é complemento ou salvação para o arco de Paul. Isto não é nenhum bildungsroman na tradição clássica.

Ao invés disso, Johnny afirma-se como alguém cujos olhos estão mais abertos para o mundo que Paul, a vítima final da arrogância adolescente aliado às pressões de uma sociedade apodrecida pela busca de estatuto, de superioridade, daquilo que é ser uma elite. Tudo isso o filme explora com devida subtileza, a não ser quando uns parentes próximos de Donald Trump mostram a cara para sublinhar a conexão entre a presidência de Reagan sob a alçada de uma classe média extasiada e o odioso modo como Trump chegou ao poder. Na observação orgânica, Gray recrimina e critica, afunda-se num oceano de culpa que se abate sobre a audiência num tsunami de luz e som, cor esbatida e movimento urgente.

Em termos formais, a obra carece algum do estilo mais conhecido do realizador. Depois da extravagância do filme de época e da fantasia espacial, James Gray parece ter feito um esforço notório para se afastar do fausto e do esplendor, do orçamento gigante e as pressões que o acompanham. Por conseguinte, a obra sente-se pequena por escolha própria, singela e deliberadamente humilde. Em jeito geral, isso beneficia o filme, mas alguns detalhes fotográficos exigem mais refinamento. O sentimento com que se fica, contudo, é que estamos perante um artefacto de enorme autenticidade, uma confissão, um gesto que faz de nós voyeurs perscrutando a dor do outro. Nesse desconforto, “Armageddon Time” atinge seu máximo potencial.

Armageddon Time, em análise
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Movie title: Armageddon Time

Date published: 12 de November de 2022

Director(s): James Gray

Actor(s): Banks Repeta, Jaylin Webb, Anne Hathaway, Jeremy Strong, Anthony Hopkins, Tovah Feldshuh, Andrew Polk, John Diehl, Jessica Chastain

Genre: Drama, 2022, 114 min

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO:

Desconfortável e ocasionalmente frustrante, o trabalho mais recente de James Gray é também o seu filme mais pessoal. Dor e culpa infetam a tela, manchando a alma com tons de cinza e ferrugem, castanhos mortiços e sombras baças. Nas suas ambivalências e complexidades, pode tratar-se de um dos trabalhos de cinema mais importantes de 2022.

O MELHOR: As dinâmicas familiares, desde a benevolência do avô à natureza mercurial assustadora dos pais. Uma cena marcada pela fúria doméstica é genuinamente aterradora, por exemplo.

O PIOR: O jovem Jaylin Webb impressiona como Johnny, mas sua prestação seria mais forte se a expressão facial não se perdesse em cenários que se perdem em paletas de castanhos justapostos, esquemas de iluminação demasiado escuros e desprovidos de contraste para uma tez tão escura. Enfim, louvamos o modo como Gray quer confrontar o racismo na sua própria biografia, mas convinha aprender como filmar atores pretos tão bem como filma o seu elenco mais pálido.

CA

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