"Beyond the Wall" | © The Match Factory

LEFFEST ’22 | Beyond the Wall, em análise

Depois de “No Date, No Signature,” o realizador iraniano Vahid Jalilvand volta a trabalhar com o brilhante Navid Mohammadzadeh em “Beyond the Wall.” O ator já foi até nomeado para os Asia Pacific Screen Awards por esta prestação, depois do filme passar na Competição Oficial na Bienal de Veneza. Agora, a obra chega ao 16º Lisbon & Sintra Film Festival, onde é um de três títulos iranianos em destaque. Esta programação só reflete a importância desse cinema nacional que, desde o fim do século XX, tem sido palco para alguns dos mais interessantes trabalhos no que se refere a drama sociopolítico e exploração metatextual.

Paredes despidas fecham-se sobre um homem desesperado, uma casa com pouca luz onde o próprio ar parece pesar com força opressiva. Mobília há pouca e está quase toda encostada às paredes, delineando vastas expansões de espaço vazio num domicílio que tanto parece cavernoso como claustrofóbico. O ambiente do lar depreende-se caracterizado pela presença humana, mas este cenário afigura-se descaracterizado de forma enfática. Tanto assim é que nos poderia parecer um lugar de passagem ao invés de vivência, um ambiente temporário por onde se entra num movimento transitório. É um espaço no precipício do limiar, um não-lugar habitado somente por fantasmas cujo coração ainda bate com vida que não o é.

Esse espectro é Ali, homem recentemente cego que deambula pelo apartamento com propósito mortal. Quando o conhecemos, a câmara perscruta a paisagem do seu corpo, uma pintura de hematomas e feridas, palimpsestos que contam uma história de colisões e incerteza, um triste fado do homem prisioneiro e atacado pela sua própria casa. A imagem drenada de cor, as paredes tristes mais salientam o rubro púrpura da nódoa negra, transmitindo o suplício de Ali com a visceralidade de um murro no estômago. É importante que entendamos seu estado de espírito, o modo como o exterior reflete uma interioridade espezinhada pelos azares da vida. Diz-se isso porque a primeira cena da personagem encontra o homem na tentativa do suicídio.

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© The Match Factory

Na casa-de-banho esquálida, testemunhamos um último ritual antes do fim. Ouve-se a música num aparelho antiquado e fuma-se um último cigarro. Ele molha uma t-shirt velha e embrulha-a em volta da cabeça, seguindo outro embrulho, desta vez com um saco de plástico. Para impedir a salvação, Ali prende as mãos atrás da canalização ancestral, corpo encurralado no metal ferrugento enquanto os pés escorregam no piso molhado. A aflição é imensa, vibra do ecrã e transtorna o espetador, mas é aí que tudo para. Alguém toca à porta e o suicídio é interrompido. Por muita que seja a sua solidez, os canos ruinosos quebram face à força do homem cego que se apressa para responder a quem o chama.

É o porteiro que traz notícias preocupantes – a polícia procura uma fugitiva que foi avistada tomando refúgio no edifício. Suspeita-se que tenha entrado num dos apartamentos do complexo através das escadas de emergência e pede-se a cada inquilino que procure a potencial intrusa. A interação com o mundo exterior depressa estabelece a animosidade quase niilista com que Ali encara tudo e todos, um desassossego hostil sem papas na língua ou falsas gentilezas. Outra visitas se sucedem – de um detetive, de um supervisor do edifício, de um médico – mas o tenor da conversa nunca muda. Só perante umas cartas misteriosas de correspondente feminina é que ele muda a atitude, tocando no papel com uma reverência comovente, mesmo quando a leitura do sobrescrito é praticamente impossível.

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Num registo de observação prolongada, até pachorrenta nos extremos da questão, Vahid Jalilvand explora a existência solitária de Ali e o modo como a fugitiva lhe vem desequilibrar a espiral autodestrutiva. Afinal, ela está no apartamento, uma presença sem nome que o filme explora em supostos flashbacks cheios de ruído e confusão, caos audiovisual em contraste com a quietude sepulcral no dia-a-dia de Ali. Chama-se Leila e é procurada apesar de nenhum crime ter cometido. Somente estava no lugar errado à hora errada, parte de uma manifestação de trabalhadores na exigência dos salários devidos há mais de quatro meses. Quando a violência despoletou, ela tentou voltar a casa e resgatar o filho pequeno aos cuidados de uma colega.

No entanto, as autoridades inebriadas de poder não têm nem sentido de justiça ou compaixão. Enfiada num carro da polícia a toda a força, Leila suplica para que a deixem ir buscar o filho, mas suas palavras caem no vazio. Algo acontece, a morte abate-se sobre a viatura cheia de detidos e a mãe foge em busca do filho, procurando guarida no prédio de Ali quando se vê perseguida. Seu conto é filmado com o brio de um thriller, ligado à subjetividade sôfrega da mulher encurralada num regime autoritário e violento, oprimida pela insensatez vil de sistemas onde a punição cega se sobrepõe a quaisquer noções de justa causa. A crítica sociopolítica que Jalilvand assim encena é feroz, transbordando raiva depurada e a indignação do ativista com altifalante na mão. Só que aqui, o altifalante é a câmara.

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© The Match Factory

Mais não revelaremos, pois “Beyond the Wall” é uma narrativa cheia de surpresas. Seus melhores momentos apoiam-se na dinâmica de atores, especialmente no que se refere a Navid Mohammadzadeh. A cada ano que passa, mais ele se consagra como um dos grandes intérpretes do cinema iraniano, conquistando neste projeto outra fantástica personagem. O seu Ali é rancoroso e paralisado pela dor, é uma força implosiva sem nada a perder, mas nunca se fecha perante a possibilidade de graça ou bondade. O gesto de reordenar a comida no prato é quiçá o píncaro da fita. É por isso que, com muita pena, temos de massacrar o que Jalilvand faz com a peça, compondo um crescendo de tensão que explode em reviravolta narrativa. As revelações finais são tão inusitadas que se tornam absurdas, dando nova leitura a tudo o que veio antes e drenando dramatismo à relação central. Em nome do choque vulgar, sacrifica-se todo um filme e lá se perde “Beyond the Wall” num poço de mediocridade profunda.

Beyond the Wall, em análise
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Movie title: Shab, Dakheli, Divar

Date published: 16 de November de 2022

Director(s): Vahid Jalilvand

Actor(s): Winston Churchill, Adolf Hitler, Benito Mussolini, Josef Estaline, Alexander Sagabashi, Vakhtang Kuchava, Fabio Mastrangelo, Lothar Deeg, Tim Ettlet, Pscal Slivansky

Genre: Drama, 2022, 126 min

  • Cláudio Alves - 55
55

CONCLUSÃO:

O ‘twist ending’ pode ser um mecanismo superlativo, dando mais dimensão a certas histórias. Noutros casos, manifesta-se em jeito de traição para com o espetador e as personagens, fazendo com que todo o aparato narrativo se reconfigure enquanto antecipação do choque passageiro, efémero e sem sentido. “Beyond the Wall” é grande exemplo deste tipo de fracasso, sendo uma obra com valor e boas caracterizações até que uma reviravolta troca o passo a toda a dramaturgia. Com sorte, o jogo de montagem e o trabalho de ator vingam apesar do mau final.

O MELHOR: O trabalho de Mohammadzadeh, especialmente aquela cena de refeição partilhada entre o cego e sua hóspede silenciosa.

O PIOR: A revelação que marca o final, um gesto conclusivo que é como o puxar da linha que faz desfazer toda uma tapeçaria.

CA

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