LEFFEST ’23 | Céu em Chamas, a Crítica

Também conhecido como “Afire” e “Roter Himmel,” “Céu em Chamas” é a nova grande obra de Christian Petzold. O filme está em destaque na Seleção Oficial – Fora de Competição do Lisbon Film Festival.

Da Berlinale ao LEFFEST, o novo trabalho de Christian Petzold tem causado sensação, arrecadando o Urso de Prata entre outros prémios. A adulação de críticos e programadores entende-se com facilidade quando estamos perante a obra, uma experiência literária que começa num tenor de observação afiada antes de uma reviravolta final acentuar a vertente trágica da tragicomédia. Tais conclusões são difíceis de adivinhar quando a história começa, numa chegada à costa do Mar Báltico, onde dois amigos, um escritor e um fotógrafo, planeiam trabalhar nos seus projetos para futuros livros.

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A casa onde ficam pertence à família do homem da câmara, Felix, enquanto Leon, o escritor, é um convidado meio intragável. Há queixas sempre na ponta da língua e o sobrolho congela num franzido cheio de julgamento, desdém vestido como capa para esconder um artista sem inspiração. Aliás, nas primeiras passagens de “Céu em Chamas” encontra muito humor nas contradições carrancudas da personagem. Atente-se o modo como quer esconder o hábito procrastinador com a aparência de lavoro extenuante, ou como rejeita a natureza bucólica do cenário, qual sombra de inverno perdida na luz deste verão quente e seco.

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© Leopardo Filmes

Só que Felix e Leon não estão sozinhos no casarão. O idílio pastoral foi invadido por outra convidada, uma mulher misteriosa de origem russa que, durante os primeiros dias da história, é pouco mais que um espectro. Seu principal sinal de vida, além de loiça usada e mercearias espalhadas pela cozinha, são os sons de sexo do quarto ao lado que dificultam o sono aos artistas residentes. Certa noite, no píncaro da frustração, Leon decide dormir ao relento e, na teimosia rancorosa, acaba por vislumbrar um homem a sair despido da casa. Ele será Devid, o salva-vidas da praia local e, aparentemente, namorisco estival de Nadja.

Sim, esse é o seu nome, revelado quando as personagens finalmente se cruzam, formando um quarteto de personalidades em colisão. O impacto parece suave ou até inexistente, mas basta um olhar para a face de Leon para desvendar os sentimentos complicados que revolvem debaixo dessa superfície social. Ele é como um buraco negro, sempre pronto a sugar a luz dos restantes, mas a câmara de Petzold parece sempre mais fascinada do que necessariamente enojada pelo comportamento. Há um paradigma de ambivalência moral presente em todo o projeto, permitindo uma leitura mais ampla do drama.




A relação estranha entre o escritor e Nadja, que ele presume ser uma vendedora de gelados sem grande importância, precipita escolhas de atuação que demoram a fazer sentido, fazendo um jogo de detalhes acumulados em jeito de estudo antropológico por meio da ficção. Paula Beer, musa regular do cineasta, jamais esteve tão interessante perante o olhar de Petzold, mantendo o mistério da figura até quando o texto esboça conclusões mais declaradas. Há ambiguidade na sua criação, até que rasgos de claridade complicam a pintura e despertam invejas profundas para Leon. São ciúmes profissionais, artísticos, mas também humanos.

Nomeado para o European Film Award de Melhor Ator com este filme, Thomas Schubert é perfeito como Leon, recordando um dos ascos de Fassbinder com alguma pátina neurótica, manienta, mais específica do novo milénio e da figura escritora. O seu bloqueio criativo é a janela aberta pela qual o argumento lhe invade a consciência, culminando na metamorfose tonal perto do fim, quando Petzold vai buscar o mecanismo do voz-off – muito típico do seu cinema – para dar forma à distância entre o olho criativo e a experiência imediata. Nesse sentido, “Céu em Chamas” torna-se num filme sobre a incapacidade de viver o momento, perdido na atuação do eu e sua canibalização para a arte.

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© Leopardo Filmes

As questões do artista e seu direito de tomar inspiração na vida daqueles que lhe são queridos tem gerado muito debate nos últimos anos e, nestas derradeiras experiências, Christian Petzold parece propor uma resposta inconclusiva para a polémica. Não há aqui a defesa da liberdade criativa, a elevação do propósito estético acima da dignidade. Mas também não existe um veredicto fechado, alguma moralidade ingénua de um cinema mais mainstream. O filme deixa-nos numa inquietação visceral, quebrando os ares bucólicos e sensualistas dos primeiros atos com terra queimada e fantasmas de Pompeia.

É o contraste entre a fotografia Rohmeriana com que Hans Fromm nos recebe e a chuva de cinza aquando do clímax. A beleza manifesta-se em prol do transtorno, tal como o humor se afigura prelúdio de algo mais negro. A análise social e psicológica disseca o indivíduo, mas, chegado o fim, parece que é o público quem se sujeita ao bisturi do realizador. Para alguns, esta arte que deixa o público perdido em desconforto deve ser chacinada. Para outros, contudo, esse sentimento é marca do melhor dos melhores. Na generalidade, mas também no caso particular deste “Céu em Chamas,” temos que concordar com a segunda hipótese.

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“Céu em Chamas” chega ao circuito comercial dia 23 de novembro, com distribuição da Leopardo Filmes.

Céu em Chamas, a Crítica
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Movie title: Roter Himmel

Date published: 12 de November de 2023

Director(s): Christian Petzold

Actor(s): Thomas Schubert, Paula Beer, Langston Uibel, Enno Trebs, Matthias Brandt, Jennipher Antoni, Esther Esche, Ralph Barnebeck

Genre: Comédia, Drama, Romance, 2023, 102 min.

  • Cláudio Alves - 90
90

CONCLUSÃO:

Do riso desconfortável às lágrimas que não vêm por muito que queiramos, “Céu em Chamas” é um novo triunfo de Christian Petzold. Esta tragicomédia às margens do Báltico representa um dos melhores argumentos do ano, propondo estruturas surpreendentes e tonalidades em reviravolta repentina.

O MELHOR: A história que Petzold formulou, seu uso de narração tardia, sua construção de personagens. Isso e o trabalho brilhante do elenco, desde o rancor de Schubert ao mistério de Beer, passando pelo erotismo queer de Langston Uibel e Ennos Trebs.

O PIOR: Nada a apontar.

CA

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