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LEFFEST ’18 | Shoplifters – Uma Família de Pequenos Ladrões, em análise

Shoplifters – Uma Família de Pequenos Ladrões” é o mais recente retrato doméstico do japonês Hirokazu Kore-eda, assim como o grande vencedor da Palme d’Or da 71ª edição do Festival de Cannes. Antes de estrear comercialmente em Portugal, o filme integra o programa do Lisbon & Sintra Film Festival.

Pelo menos de uma perspetiva internacional, pequenos dramas familiares têm sido um dos mais típicos e reconhecíveis elementos do cinema nipónico desde o apogeu de Ozu. Na contemporaneidade, Hirokazu Kore-eda é um dos realizadores japoneses que mais deve a este mesmo modelo de miniaturas domésticas. “Ninguém Sabe”, “Andando” e “Tal Pai, Tal Filho” são alguns dos seus maiores sucessos e foi precisamente esse último título que acabou por levar o cineasta a levantar a si mesmo uma questão notoriamente ignorada por todo um cinema nacional obcecado com a unidade familiar. Afinal, o que é uma família?

Em “Shoplifters – Uma Família de Pequenos Ladrões”, o afeto e não o sangue parece ser a cola que liga e define tais dinâmicas e valores sociais. De facto, a unidade familiar que dá título à obra, é constituída por pessoas sem quaisquer laços genéticos. Osamu é o patriarca de meia-idade que trabalha na construção civil e tem como sua companheira Nobuyo, empregada numa lavandaria industrial e portadora de um passado cheio de traumas. Como todos os membros do clã Shibata, eles vivem na pequena e muito antiga moradia da avó Hatsue, cuja pensão representa grande percentagem do orçamento familiar. Aki é neta do ex-marido de Hatsue e passa os dias vestida como uma colegial e a dar vida às fantasias de homens solitários. Por fim, temos Shota, um menino pré-adolescente a quem Osamu está sempre a tentar convencer a chamar de pai.

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O que é uma família?

Apesar dos três ordenados e uma pensão de reforma, os Shibata vivem em pobreza e apoiam-se no furto para sobreviverem. O filme começa mesmo com uma rotineira passagem de Osamu e Shota por uma mercearia de Tóquio, onde o homem mais velho distrai possíveis autoridades enquanto o rapaz sorrateiramente enfia pacotes de noodles e outros alimentos na mochila. Hirokazu Kore-eda não romantiza nem condena as ações criminosas das suas personagens, mas documenta seus afazeres com tanta franqueza como retrata a felicidade doméstica que elas conseguem encontrar no meio de cataclísmica precariedade económica. Este é um lado da sociedade japonesa que audiências internacionais raramente veem e é aqui apresentada sem qualquer mecanismo sensacionalista de choque ou melodrama.

É numa noite de inverno em que Osamu e Shota regressam a casa com seu saque e um punhado de croquetes quentes que o par se depara com uma menina enregelada e com fome, deixada sozinha fora de um bloco de apartamentos. Ela pouco ou nada diz e não querendo abandonar a menina à mercê dos elementos, Samu decide levá-la para casa. Ela chama-se Yuri, se bem que inicialmente eles pensam que o seu nome é Juri, e tem o corpo coberto de nódoas negras e cicatrizes, está magra, amedrontada e da casa onde vive só se ouvem gritos de um casal a discutir e a proclamar que nunca quiseram ter uma filha. Face a isto, Nobuyo, que parece ver muito de si na criança rejeitada e abusada, decide ser a nova mãe da pequena.

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Para os Shibata, tal pode ser uma adoção informal, mas para o mundo exterior ao seu excêntrico microcosmos, trata-se de um rapto e não demora muito até que imagens de Yuri apareçam nos noticiários. Em nome do anonimato, eles cortam-lhe o cabelo e batizam-na com um novo nome. À medida que os meses passam, é como se a rapariga renascesse com sorrisos a florescer pela primeira vez na sua cara e o redescoberto conforto do carinho de quem se preocupa genuinamente com a felicidade dela. Como já é costume nos filmes deste realizador, com o advento do verão e do calor, a família viaja até à praia num interlúdio idílico que, acompanhado pelas palavras proféticas de Hatsue, se acaba por afirmar como a proverbial calma antes da tempestade.

Se até o seu ato final “Shoplifters” havia sido pouco mais que uma amorfa exploração do dia-a-dia no seio desta família, os derradeiros 30 minutos do filme são uma radical mudança de tom e estrutura. Após nos ter imergido no amor que une estes seis indivíduos, levando-nos a ficar emocionalmente investidos no seu fado, Hirokazu Kore-eda ilumina a dinâmica das personagens com a violenta luz da sociedade mainstream do seu país, seus valores e sistema judicial. Enquanto espectadores, somos convidados a reconsiderar as ações das personagens e ponderar a sua legitimidade, a refletir sobre as escolhas tomadas por Osamu e Nobuyo e, acima de tudo, pensar na resposta a essa já referida pergunta que motivou a criação de todo este filme. O que é uma família?

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Humanismo cinematográfico em estado de graça.

Do ponto de vista das autoridades, cujas palavras frias são quase obscenas na sua perversão maligna de todo o ambiente idílico que vimos anteriormente, família é algo que depende do sangue. Para alguém ser mãe, tem de ter dado à luz e Nobuyo não é mãe nenhuma, enquanto a progenitora de Yuri pode desfrutar desse título apesar de negligenciar e agredir a criança. Durante anos, Hirokazu Kore-eda explorou dinâmicas familiares com um olhar ternamente humanista, mas “Shoplifters” é talvez a primeira vez que os seus olhos se viraram para algo além do seio familiar, para a sociedade, cultura e política que valida, valoriza e protege essas ditas famílias. Talvez por isso mesmo, não obstante a natureza lacrimosa das suas resoluções, a narrativa do filme é marcada por um anti sentimentalismo absoluto que é principalmente motivado pela forte contracorrente de fúria e indignação.

Uma sociedade não se pode chamar a si mesma justa ou em defesa da família quando insiste em definir essa mesma instituição social por paradigmas arcaicos, mais ligados a tradicionalismos burgueses que a qualquer tipo de realidade humana. Dentro da moldura penal da lei japonesa, toda a desgraça conclusiva de “Shoplifters” constitui um final feliz, onde a justiça mais uma vez prevalece sobre os vilões que desafiam os bons costumes. Para o espectador orientado pela câmara de um realizador embriagado de empatia dolorosa, trata-se de uma tragédia sem gritos ou manipulações sentimentais, trata-se do quebrar de corações e da derrota do amor invalidade por sistemas que não o sabem reconhecer ou dar valor.

Tais palavras podem sugerir que este é um filme que vive e morre na emoção que ilustra e desperta no espectador, mas essa observação seria uma enorme injustiça para com as habilidades do seu realizador. Há aqui uma sofisticação cinematográfica incomum em ação, capaz de sintetizar universos de solidão num abraço iluminado por cores lúridas, de conceber o luto através do pentear de longos cabelos cinzentos e a reviravolta violenta no rolar de laranjas por uma estrada alcatroada. Também o trabalho de atores é exímio, especialmente no que diz respeito ao naturalismo consumado do elenco infantil e ao pragmatismo afetuoso de Kirin Kiki num dos seus últimos papéis. Tanto a nível formal como textual, ideológico e emocional, “Shoplifters” é uma joia de humanismo cinematográfico que todos deveriam ver.

Shoplifters - Uma Família de Pequenos Ladrões, em análise
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Movie title: Manbiki kazoku

Date published: 16 de November de 2018

Director(s): Hirokazu Kore-eda

Actor(s): Lily Franky, Sakura Andô, Kirin Kiki, Jyo Kairi´, Mayu Matsuoka, Miyu Sasaki, Kengo Kôra, Chizuru Ikewaki

Genre: Drama, Crime, 2018, 121 min

  • Cláudio Alves - 90
  • José Vieira Mendes - 90
  • Daniel Rodrigues - 70
83

CONCLUSÃO

Profundamente comovente e doloroso, “Shoplifters” é um dos melhores filmes de Hirokazu Kore-eda e um justo recipiente da Palme d’Or.

O MELHOR: A prestação de Sakura Andô, que num gesto repetido ilustra toda a angústia de uma mulher cruelmente forçada a reavaliar a validade do seu amor maternal.

O PIOR: Como sempre nos filmes deste realizador, há uma colossal dissonância entre os ritmos alegres da banda-sonora e a complexidade emocional e tonal em cena.

CA

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