LEFFEST’15 | Kaili Blues, em análise
Kaili Blues, o primeiro filme do realizador chinês Gan Bi, é uma hipnotizante exploração do tempo na linguagem cinematográfica. No entanto, será difícil encontrar audiências generosas o suficiente para se deixarem enfeitiçar pela sua experimentação alienante e opacidade poética.
O que farias se pudesses controlar o tempo? Se pudesses recuar para o passado? Avançar para o futuro? Simplesmente parar o movimento progressivo do tempo e congelar tudo num momento? Muitos teóricos de cinema, entre eles o célebre Gilles Deleuze, defenderam que o tempo e sua manipulação, mais que o movimento das imagens, são a derradeira diferenciação entre o cinema e as restantes artes. Em Kaili Blues, o seu primeiro filme, Gan Bi cria uma contemplativa visão da passagem do tempo, moldando-o, transmutando-o e conseguindo criar uma das mais curiosas e ambiciosas obras do cinema chinês contemporâneo.
O filme, que está longe de ser uma narrativa de fácil compreensão, segue a figura de um médico, Chen Shen (Yongzhong Chen), focando-se especialmente na sua relação com o irmão, de alcunha Crazy Face (Lixun Xie), e seu sobrinho Wei Wei (Feiyang Luo), que é negligenciado pelo pai. Na primeira secção de Kaili Blues, vamos obtendo pequenos fragmentos de narrativas e histórias pessoais, tanto de Chen como de outros indivíduos à sua volta. Apesar de imensamente opaco na sua abordagem, o filme aqui apresenta-se com uma certa convenção formal, usando apenas algumas imagens fugazes para ilustrar o passado relatado pelas suas personagens. O passado é, aliás, uma incontornável constante nestes momentos do filme, de tal modo que Kaili Blues parece aqui ser uma espécie de rescaldo de um filme anterior, onde a ação principal ocorreu, sendo que agora apenas restam os sobreviventes que olham o seu passado e desejam poder mudar o que fizeram, corrigir erros ou evitar desgraças familiares.
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Esta secção do filme encerra-se com o aparecimento do título do mesmo, provocatoriamente colocado muito depois de Kaili Blues se ter iniciado. Numa tentativa de recuperar o seu sobrinho, que o irmão enviou para outra aldeia, Chen parte numa viagem em busca de Wei Wei. Observamo-lo em comboios, em estradas cobertas por espessa névoa, e finalmente deparamo-nos numa aldeia vizinha onde o filme simplesmente para. Aqui, Gan Bi numa corajosa proeza técnica filma toda a segunda secção do filme num só plano sequência em constante movimento. Se a montagem é a grande propulsionadora do avançar do tempo em cinema, Gan Bi ao recusar a montagem, estagna forçosamente o tempo de Kaili Blues num momento de prolongada contemplação.
Não é só a impetuosidade técnica que impressiona nesta parte de Kaili Blues, mas principalmente a sublime manipulação temporal do seu autor, que usa a aldeia como uma espécie de zona sem tempo, em que o passado, presente e futuro se mesclam numa hipnotizante experiência. Wei Wei aparece como adulto, informações que antes ouvimos na cidade de Kaili, no início do filme, são ouvidas na rádio como se pertencessem ao presente e não ao passado distante, e a própria estruturação do filme em volta de um protagonista parece descambar numa apaixonante fluidez de movimento.
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Tais experimentações acabam por se encerrar, tendo o filme uma espécie de breve epílogo onde será impossível ignorar a temática temporal de Kaili Blues. Numa experiência cinematográfica recheada de contemplação hipnotizante, o último plano consegue ser dos mais formidáveis e elegantes finais do ano cinematográfico de 2015, contendo em si muito mais carga poética que as constantes voz-off que vão pontuando o filme, como se Kaili Blues fosse um sonho acordado e partilhado entre Chen, o seu realizador e a audiência que tiver a oportunidade de ver esta alienante mas gloriosa obra.
CA