Linda Martini (©Margarida Ribeiro)

Linda Martini no Musicbox: O bom filho a casa torna

Com a digressão “Agora Escolha” prestes a terminar, os Linda Martini retornam a casa e dão um dos concertos mais emotivos de 2018.

2018 foi um ano positivo para os Linda Martini. A banda lisboeta lançou, no mês de Fevereiro, o quinto e homónimo álbum de estúdio (nomeado pela revista Blitz como o melhor disco nacional de 2018), o seu concerto no Festival Vodafone Paredes de Coura foi apontado pela Magazine.HD como um dos principais destaques do evento e encerram o ano com uma reedição de Linda Martini (acompanhado de um EP que inclui as canções inéditas “Óssa Menor” e “Europeu Comum) e o anúncio da digressão “Agora Escolha”, um regresso aos clubes iniciado, no dia 5 de Dezembro, em Évora e concluído na cidade-natal da banda, com quatro datas esgotadas no Musicbox. Hoje, expectante, marco presença num recinto já conhecido do grupo, lotado de diferentes gerações de fãs. Uma família que se foi formando desde 2003, reunida em plena época natalícia.

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Triunfante, a face da italiana que deu nome à banda encara-nos do topo de um palco vazio. Aguardamos de modo impaciente, até que começam a surgir os primeiros aplausos na fila da frente, instantaneamente seguidos de uma inevitável e calorosa recepção geral. Mais confiantes do que nunca, os Linda Martini assumem a sua formação habitual. A baixista Cláudia Guerreiro na dianteira. A seu lado, os guitarristas André Henriques e Pedro Geraldes. Por fim, Hélio Morais na bateria. Quatro rostos que dispensam apresentações. Afinal de contas, foram eles (e continuam a sê-lo) os dinamizadores da rebelião, do saudosismo e da melancolia durante mais de uma década. Os comandantes da herança vanguardista. Abrem o concerto com a já mencionada “Europeu Comum”, promovendo o subtil agitar dos corpos, o fechar-de-olhos. Se dúvidas ainda restam quanto à sensação de compromisso íntimo que particulariza este espectáculo, todas se dissipam com “Panteão” e o desinibido entoar colectivo da letra inerente a uma descendência. “Que se foda o Panteão, dou os ossos a um cão, que me roa a salivar”.

Regressamos ao primeiro álbum de estúdio dos Linda Martini, Olhos de Mongol (e ao EP homónimo de estreia), com a performance de três favoritos do público, “Lição de Voo Nº1”, “Estuque” e “Amor Combate”. O pós-rock característico da primeira fase da banda alimenta-se das dinâmicas entre elementos, bem como das suas vistosas individualidades. Cláudia dedilha algumas das mais enternecedoras linhas de baixo que já ouvi, operando o instrumento como se de um prolongamento do seu torso se tratasse. Hélio delibera o tempo, impelindo para a frente ou abrandando as composições. As guitarras deambulam, desafogadamente, pelos versos de André, que recorre à voz para se distanciar deste género musical. Orações de significado entranhado. Não tanto pelo que expõem no seu sentido mais literal, mas antes pelas lembranças de tempos passados que acarretam. Todos as escutamos de forma díspar, todos as replicamos de modo igual. “Por tanto quereres o que não tens, a voz é surda atrás da mão”.

Linda Martini (©Margarida Ribeiro)

A urgência evidenciada na musicalidade de “Ratos”, auxiliada pelas exclamações de revolta de André (“Os ratos vão-me devorar”), ateia fogo a uma audiência extremamente inflamável (ou não estivéssemos num concerto dos Linda Martini). O inconfundível círculo de moche mantém-se activo durante as duas canções seguintes, “Mulher-a-Dias” e “Putos Bons”. Se Sirumba, quarto álbum de estúdio dos Linda Martini, substitui a essência agressiva de Casa Ocupada e Turbo Lento por uma enfatização da componente melódica, a sua representação ao vivo acaba por conservar a impulsividade característica do instrumental da banda, assim como a crueza da voz de André. Ao som de “Eu não caibo em mim, se me for, vai lá pôr uma flor”, os “putos bons” empurram, saltam e navegam por entre braços. O frenesi só afrouxa com os versos iniciais da belíssima “As Putas Dançam Slows”, imediatamente reconhecidos e trauteados pelo público emocionado. Poesia clandestina conduzida pelos vasos sanguíneos. Sente e faz sentir. “Não ama quem quer, mas quem a quer amar”.

As regulares comparações entre Sonic Youth e Linda Martini (assentadas, sobretudo, no feedback das guitarras e dissonâncias) sempre me pareceram algo forçadas. O hardcore de D.C. e o movimento apelidado de “som de San Diego” são os dois circuitos musicais que mais se aproximam da sonoridade da banda alfacinha, a meu ver. No entanto, em “Juventude Sónica” deparamo-nos com uma composição reminiscente do grupo nova-iorquino. O título da canção, assim como a sua estrutura musical, funcionam como um autêntico tributo. Não aos Sonic Youth, mas às analogias efectuadas pelos ouvintes. Observações à parte, esta faixa de Casa Ocupada perdura no tempo, dado assegurado pelo estado de êxtase da audiência ao ouvir as primeiras notas da canção. Neste instante, gostaria de parar o relógio e contemplar o olhar de cada um dos fãs. O jovem que mimica um crucifico no topo do palco. A moça petite que me pede licença. Todos experienciam o momento presente, o produto musical na sua forma mais pura. O Musicbox é o céu, acima dele não há nada. Por fim, reiniciar o contador e testemunhar o clímax do concerto. “Parecemos putos, não temos aulas amanhã”, gritam mil vozes em uníssono. Torna-se impossível não idealizar uma imagem romântica desta forma de arte perante cenários como este.

Linda Martini (©Margarida Ribeiro)

Colérica, a faixa de abertura de Linda Martini, “Gravidade”, agarra-nos de novo ao chão e sacode-nos sem misericórdia. Em “Cem Metros Sereia”, assistimos a uma prolongação do acto final da canção, como já é habitual nos concertos. Inchado, o público entoa “Foder é perto de amar, se eu não ficar perto” como se de um hino nacional se tratasse. A banda limita-se a apreciar a sua própria criação, hoje celebrada pelo aglomerado de fiéis seguidores. Guardam o melhor para o fim: o excepcional crescendo de “Dá-me a Tua Melhor Faca” e a recitação neurótica de “O Amor é Não Haver Polícia”, duas velhinhas pertencentes ao alinhamento de Olhos de Mongol. Não queremos “parar aqui”. Não agora, com a audiência ao rubro e a infraestrutura presa por um fio. Suplicamos por um encore. A banda acede com duas canções do mais recente disco. Em “Boca de Sal”, prevalece a guitarra angular de André, ora intrometida, ora distanciada da composição central. “Quase Se Fez Uma Casa” encerra o espectáculo. Agora, são os Linda Martini que nos fazem um último pedido. “Caso tenham visto o teledisco desta música, podem tentar replicá-lo”. O resto adivinha-se.

Uma noite arrepiante, sem sombra de dúvida. Os quatro lisboetas, regressados à cidade-natal, revisitam a sua discografia de forma exímia, proporcionando um concerto emotivo, intenso e sui generis. O público bem merece. A sua música foi a imprescindível banda-sonora de bonitos romances e amargurados desfechos, complicadas despedidas e ansiados retornos, do erro e da redenção, de todas as “primeiras vezes”, do fim da inocência. Afinal, muitos de nós amadurecemos com os Linda Martini. E eles amadureceram connosco, tornando-se numa das referências da música portuguesa. Hoje, reunimo-nos em casa e concedemos-lhe significado. Não foi a primeira vez, decerto não será a última. Citando aquele grupo pop rock dos anos 80, “Leva-me contigo, dentro de ti, para depois voltar ao bar e por mil tragos cantar”. Se há um modo universal de viver a música dos Linda Martini, encontra-se descrito nesta passagem. Disso tenho a certeza… e tu também.

LINDA MARTINI | MUSICBOX 21 DEZEMBRO 2018

Linda Martini no Musicbox: O bom filho a casa torna
  • Diogo Álvares Pereira - 90
90

Um resumo

Com a digressão “Agora Escolha” prestes a terminar, os Linda Martini retornam a casa e dão um dos concertos mais emotivos de 2018.

Texto de Diogo Álvares Pereira
Fotografias de Margarida Ribeiro

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