Low, Double Negative | em análise
Double Negative desenterra fragmentos de beleza de uma paisagem apocalíptica. Com o seu gesto artístico, os Low mostram que a vida será sempre maior do que as sombras.
Em “Dancing and Fire”, Alan Sparhawk canta que “it’s not the end, just the end of hope”. Se assim for, é trágico porque o que define os Low é precisamente a esperança. Esta é feita tanto da solidez de uma estrada percorrida quanto do resto de estrada a percorrer, que o troço já pisado continuamente abre em frente. A longevidade da banda, que coincide com a firmeza do casamento entre os seus dois principais membros, Alan Sparhawk e Mimi Parker, e a indiscutível qualidade dos seus doze álbuns de estúdio, é ela mesma um motivo de esperança, não só para os Low. E se me pedissem que definisse a sua música numa palavra, mais do que o rótulo de “slowcore” ou “sadcore”, escolheria antes a ideia de “espera”. Feita de espera, educativa da espera, a sonoridade dos Low germina lentamente, no seu ventre, uma interrogação pelo futuro, que surgindo do paciente passar do tempo, sentido a conta-gotas, permanece suspenso na alma e na memória, uma vez terminado o álbum. Coagulação do já vivido, a esperança permite atravessar a espera: “A esperança é a única coisa que te pode fazer continuar, porque nunca sabes o que vai acontecer ao virar da esquina.” (Mimi Parker)
Precisamente na altura em que o grunge nascia, atrasando o andamento da música até aos limites do depressivo, ao mesmo tempo que tornava mais abrasiva ainda a nuvem de distorção da guitarra pós-hardcore de bandas como Fugazi e Hüsker Dü, mas também The Replacements e Dinosaur Jr., bandas como Galaxie 500, Codeine, The Red House Painters e Low estavam a explorar outra avenida igualmente provocatória: e se uma banda tocasse em palco música tranquila e lenta? Tão tranquila e tão lenta que se tornasse desconfortável? Herdando as melodias repetitivas e etéreas dos Galaxie 500 e a quietude desolada dos Codeine, o “slowcore” ou “sadcore” nunca entrou na consciência popular, sofrendo o mesmo destino de outras formas de pós-rock da década de 90. Como tudo o que se desenvolve na meia-luz, pôde no entanto crescer, influenciar a paisagem em redor e perdurar até hoje, pelo menos na figura dos Low.
O lado juvenil em mim gostaria de estar sempre a fazer discos difíceis. Não há dúvida de que tenho esta costela em mim de querer assaltar criativamente, de algum modo, as pessoas. Os Low têm sido, basicamente, este esforço de tentar manter isto sob controlo e tentar que vá saindo de maneiras que sejam construtivas. (Alan Sparhawk)
Oriundo de uma família Mormon, habituado a ouvir música na igreja e a ter o pai a cantar e tocar bateria em bandas locais, desde pequeno que Alan Sparhawk desejava seguir música. No liceu, não só conheceu Mimi Parker como entrou para uma banda chamada Zen Identity, que soava a R.E.M e Jane Addiction, “como os Soundgarden do princípio, mas talvez um pouco mais choramingas” (Alan Sparhawk). Já então Alan começara a procurar criar, com o baixista dos Zen Identity, um som que fosse “estático e parado e talvez mesmo calmo”. Juntando-se a este, quando a banda acabou, e convencendo Mimi, com quem casara em 1990, a tocar bateria, Alan fundou os Low. Em 1994, lançam o primeiro álbum, significativamente intitulado I Could Live In Hope, cuja sonoridade intransigentemente esparsa e espaçosa os aproximava de bandas como os Codeine ou os Bedhead e estabelecia o DNA da sua música, que ainda hoje se pode ouvir em canções como “Dancing and Fire”.
Desde então e vários baixistas depois, a experiência, eventos da vida como o nascimento dos filhos ou a depressão profunda e a relação com diferentes produtores – Mark Kramer, Steve Fisk, Steve Albini, Dave Fridmann e agora B.J. Burton – trouxe ao de cima inúmeras inflexões e a oscilação entre modalidades mais agressivas ou electrónicas e até pop de uma identidade, não obstante tudo, sempre inconfundível. Segundo Alan Sparhawk, esta vai-se alterando aqui e acolá. “Mas desde o início, a única coisa que mudou foi a nossa percepção e consciência dela. […] Isto era uma coisa que estávamos só a fazer e, depois de alguns discos, começa-se a ver traços comuns e, então, fazem-se alguns discos tentando escapar disso.” Só para perceber depois que “não, ainda ali está”. E acrescenta: “No tempo, acabei por confiar que se somos nós, independentemente do que façamos, irá soar a nós. Não há necessidade de provar ou forçar isso.” Esta despreocupação em cultivar uma identidade, vinda da certeza de não se poder deixar de ser si próprio, tira aos Low qualquer medo de arriscar em colaborações exacerbadoras dos aspectos da sua personalidade que eles próprios desejam ver emergir em cada novo álbum. Uma das mais bem sucedidas foi, sem dúvida, com Steve Albini, da qual resultou o clássico Things We Lost in the Fire (2001).
DOUBLE NEGATIVE | “DISARRAY”
Para One and Sixes (2015), os Low quiseram cooperar com B.J. Burton, pensando que este faria sobressair o seu lado mais agressivo, talvez nem sempre evidente mas parte integrante da herança pós-hardcore da banda. Esta versão mais electrónica, cheia de reverberação, estática, distorção e um baixo ribombante, é desenvolvida em Double Negative, onde os Low voltaram a trabalhar com Burton. É fácil perceber a continuidade entre temas como “No Comprende” e “Disarray”, mas o novo disco é bem mais coeso.
Aventurando-se no caminho da música ambiental, Double Negative parece ter sido concebido como um todo, onde mais do que canções são-nos oferecidos andamentos. Não é de admirar que, aquando o anúncio do novo álbum, em vez do habitual primeiro single, os Low tenham partilhado o tríptico de canções que abre o disco. A história que este conta é distópica, a paisagem esboçada apocalíptica, e a impressão de desolação já não é conseguida por meio da sonoridade sussurrada e rarefeita do sadcore dos Codeine, mas através de uma textura densa (para os parâmetros dos Low), tecida de ondas de ruído electrónico e levada por um baixo monocórdico, profundo, ecoante e explosivo. Como o rescaldo silencioso e desértico de uma guerra nuclear ou a travessia a pé do reino incinerado de Mordor.
DOUBLE NEGATIVE | “QUORUM/ DANCING & BLOOD/ FLY”
Qual prelúdio sinfónico, “Quorum” abre Double Negative desenhando o cenário catastrófico da sua narrativa. Um baixo soluçado e intermitente, atravessado de distorção, evoca explosões de napalm ou linhas de rádio quebradas, cheias de interferência, a fervilhar de estática. Como numa transmissão dificultada pela destruição de postes intermédios, a voz de Alan Sparhawk vai-se ouvindo fragmentariamente. O ruído surge controlado, irrompendo e retraindo-se, continuamente libertado e emudecido, como um campo de guerra atravessado pelo silêncio e quietude da morte. Esta paisagem não é senão uma desolação interior, revelada pelos “vacant stares” da maioria, daquele “quorum” que elide as vozes discordantes.
Com a percussão tribal e pulsante de “Dancing and Blood” somos levados a um mundo sobrevivente à aniquilação nuclear, reconduzido ao estado primitivo, imagem poderosa da inutilidade de todo o esforço: “All that you gave/ wasn’t enough […] Throw in the earth/ Dancing and blood”. Ficam o cansaço, a desistência e a tentação de escapar. Uma melancólica acalmia entra com “Fly”, que não passa de perigosa resignação e mero entorpecimento. O baixo pontuado de arritmias, metáfora de um coração a falhar, é contrastado pela melodia e timbre vocal etéreos. Mimi Parker expele o seu canto do cisne: “But I don’t know/ And I don’t mind/ Leave my weary bones/ And fly”.
DOUBLE NEGATIVE | “POOR SUCKER”
O apocalipse não é, contudo, a única ou a última palavra, em Double Negative. No interior do omnipresente ruído crescem lentas as melodias, vão irrompendo da nuvem de distorção, mesmo se para de novo nela submergir, até ecoar, por vezes e por instantes, belas e solitárias. Fragmentos de hinos, de flauta, vozes angélicas, coros russos ou murmúrios celtas são como rasgos de luz na penumbra da noite, um alvorecer espiritual de que “The Son, The Sun” é paradigma. Double Negative deixa de ser apenas um lúgubre protesto político, para se tornar uma imagem da vida, árdua mas verdadeira, e o que parecia desistência é afinal um desabafo: “It’s more let it out than let it go”. Por vezes não se sabe por que se luta e a esperança esmorece; compreender é um interminável processo de tentativas imperfeitas, aproximadas; mas uma segurança existe: “The truth is not something that you have not heard”.
Em “Disarray”, ouve-se o fantasma da longa depressão e lenta queda na loucura sofridas por Alan Sparhawk nos meados da década de 2000: “Eu não gosto necessariamente de ser louco, não é tão divertido como parece. Fazer música é perigoso o suficiente e, se não se está inteiro nisso, tudo se desfaz num instante. Tive a sorte de estas pessoas terem tido a paciência e o amor suficientes para não me abandonar completamente” (Alan Sparhawk). No entanto, que se possa falar disso numa canção é sinal de que a borrasca foi atravessada, tornada história e aprendizagem. A criação artística é o gesto positivo por excelência, ao trazer a consciência à vida. Double Negative é a cristalização num objecto, aqui entre nós, da experiência de que é possível dizer não ao negativo e da certeza de que a vida não é uma tragédia, a partir do momento em que a escolha existe: “Before it falls into total disarray/ You’ll have to learn to live a different way”.
Low, Double Negative | em análise
Name: Double Negative
Author: Low
Genre: Indie Rock, Slowcore, Música ambiental
Date published: 14 de September de 2018
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Maria Pacheco de Amorim - 92
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Rui Ribeiro - 75
Um resumo
Em Double Negative, os Low criaram uma segunda obra-prima. Se Things We Lost in the Fire lhes garantiu um lugar indelével na memória da década passada, Double Negative assinala a relevância da banda de Duluth, Minnesota, na presente década, de cujo panteão constará seguramente quando for a altura de listar o que de melhor nela se fez. É uma cristalização perfeita, no contexto do apocalipse moderno, da antiga ideia de que “militia est vita hominis super terram” (Job 7, 1).
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Longe Demais
Embora concordando no geral com a excelente crítica da MPA e enquanto grande e long time fã dos Low, não posso deixar de manifestar a minha reserva sobre este (demasiado) arrojo e desvio da banda, que aqui corre, para mais desnecessariamente, o risco de cair na perigoso campo do facilitismo quanto ao uso do noise. Não seriam nem os primeiros nem os últimos e até acredito que não tenham tido a real noção do resultado. A mão do conhecido, perigoso e enjoativo (para mim e muitos) produtor de Bon Iver, em triste hora convidado para este álbum, não deve ter sido alheia…
Em pelo menos 3 faixas de Double Negative, o que temos não é desmantelamento, nem ruído branco, nem ruído rosa, nem distorção harmónica, mas simplesmente destruição, no mínimo desnecessária e quase diria gratuita, pela via do ruído puro, do tipo partir pedra ou perfurar metal com uma broca já estragada. Distorção e noise enquanto música, são honestamente exibidas pelos MBV (Loveless), os BSS (Halfway Home), cuja arte do resultado final está ao nível dos anteriores álbuns dos Low. Mas aqui fomos longe demais. Tenho pena, podia ter sido um álbum monumental. Assim, ficou como uma obra prima onde se deixou cair na tela (propositadamente) um borrão de tinta. Em termos audio ficou (em parte) insuportável, inaudível e desaconselhado em qualquer sistema de reprodução de alta resolução.
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Cara Isabel, começo por agradecer a sua gentil apreciação da minha crítica e fico contente que partilhemos a estima por esta banda. Compreendo também que o resultado da experimentação sonora levada aqui a cabo pelos Low não tenha sido do seu agrado. Ainda assim, até isto redunda em prol da potência do álbum, capaz de gerar polémica e retirar os ouvintes da sua zona de conforto. Como acima referi, foi essa sempre, aliás, a grande e perene intenção de Alan Sparhawk. Não acredito, pois, que o resultado se deva à ingerência do produtor, nem que a banda tivesse ido mais longe do que pretendia.
Quanto à questão do ruído, o que conta ou não como “ruído” ou o que é ou não inaudível depende dos hábitos de audição e a miríade de contextos em que, integrado, começa a adquirir sentido. Pessoalmente não julgo sequer que este seja um álbum particularmente ruidoso – é-o menos do que o Loveless (quanto à “Halfway Home” dos BSC, confesso que não percebo a sua inclusão nesta categoria de “ruído”) – nem lhe falta objectivamente melodia. Penso que o problema não é tanto o ruído mas o tipo de ruído: a Isabel não está a conseguir fazer sentido deste ruído em particular. Enquanto o ruído típico das bandas de metal ou shoegaze já foi processado pela tradição, pelos hábitos de audição culturais (e os seus também, provavelmente), o mesmo não acontece aqui, mostrando o quão novo e diverso é aquilo diante do qual a Isabel se encontra, pelo menos para a Isabel. O que aqui temos é mais parecido com o que, por exemplo, uma produtora como Laurel Halo faz: uma degradação do som até ao ponto da sua recriação e uma exploração do seu potencial analógico. Os ruídos em Double Negative procuram realmente imitar certos ruídos do nosso mundo, permitindo a construção quase visual da paisagem sonora. Nesse sentido, estamos diante de um caso de música ambiente e do tipo de ruído nela gerado. Por isso lhe parece pouco melódico – de facto, é mais visual do que sonora a sua maneira de produzir significado; por isso lhe parece estranho – porque talvez não seja um género a que a Isabel esteja habituada (poucos estão…); por isso lhe soa a mero ruído – precisa de ser digerido e no interior de outros casos semelhantes.
A Isabel gosta dos Low, só não gosta é talvez de música ambiente e, por isso, não gosta destes Low. E não há nada de mal nisso 😉