Macbeth, em análise
Na sua selvagem reinterpretação de Macbeth, Justin Kurzel concebeu uma das mais impetuosas e sensorialmente violentas adaptações de Shakespeare no cinema.
Tal como muitas das mais celebradas obras de William Shakespeare, a tragédia de Macbeth já foi numerosas vezes adaptada ao cinema, com autores tão ilustres como Orson Welles, Akira Kurosawa, Roman Polanski e Béla Tarr a adaptarem a narrativa de um nobre guerreiro escocês que sobe ao trono a seguir a vitórias militares e o traiçoeiro assassinato de seu soberano. Apesar da contribuição desses já referidos autores à longevidade de Macbeth no cinema, poucas são as adaptações contemporâneas de Shakespeare que têm a descarada ousadia de realmente oferecer uma interpretação ou reinterpretação do texto seiscentista. Felizmente, Justin Kurzel seguiu o inesperado caminho da ousadia formal e textual, recusando-se a criar mais uma adaptação à letra e acabando por dirigir uma versão semelhante à de Polanski em brutalidade sangrenta, mas que possui uma jovial predisposição para despedaçar e dissecar o texto teatral do Bardo.
Apesar desta celebração de Kurzel, há que louvar Jacob Koskoff, Michael Lesslie e Todd Louiso, os argumentistas que inteligentemente aproveitaram a brevidade do texto original para realmente explorarem as suas mais rebuscadas possibilidades estilísticas e psicológicas. Passagens icónicas como os versos cantados das bruxas proféticas são atirados borda fora e as próprias motivações das personagens são fortemente reinventadas. Basta olharmos para os momentos que abrem e fecham o filme para verificar quão estes escritores, e Kurzel, realmente se atreveram a mudar o cânone shakespereano. No início, são colocadas em ênfase preparações ritualísticas, ora o funeral de um filho de Macbeth inexistente na peça, ora o prólogo de uma sangrenta batalha. Em ambos estes momentos, a verbosidade poética que expectamos com o nome de Shakespeare não se manifesta, sendo o mais marcante som humano os gritos de guerreiros em bárbara confrontação.
Outra das mudanças mais radicais de Kurzel e sua equipa de argumentistas é a sua reinterpretação da chegada dos bosques de Birmwood a Dunsinane. Se em Shakespeare tal impossibilidade é tornada possível pelo avançar de um exército que se disfarça com as árvores a servir de camuflagem, na visão imensamente lamacenta e fumarenta do autor australiano, o bosque abate-se sobre o castelo de Macbeth sob a forma de cinzas, estando a floresta em infernais chamas. Quando confrontados com escolhas como estas, há que ter em conta como no cânone shakespereano, Macbeth é uma das obras em que o mundo natural e seus fenómenos atmosféricos mais são colocados em posição de destaque. As intempéries escocesas como que refletem a podridão moral da narrativa, assim como oferecem uma característica quase punitiva ao ambiente habitado pelas personagens. Kurzel pega em tais referências e viola quaisquer limitações naturais com uma assustadora insolência. Quando, nesse final, a paisagem parece sangrar com uma demónica luz vermelha, é como se finalmente a ordem do mundo natural se desintegrasse, e estivéssemos a ver a completa e horrenda manifestação visual do inferno criado pela amoralidade das personagens em cena, uma manifestação sugerida por Shakespeare e completamente levado a níveis de hipérbole selvageria pelo realizador australiano.
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O som e os visuais são, aliás, tão violentos como a narrativa, como que apunhalando os olhos e ouvidos da audiência numa orgiástica explosão de fúria formalista. O horror da guerra e a visceralidade repugnante na mise-en-scène de Kurtzel não surpreenderão quem estiver familiarizado com a sua estreia cinematográfica, o lúgubre Snowtown Murders, mas aqui, com a ajuda de uma fabulosa equipa criativa, o autor chegou a novos píncaros. Os ambientes escoceses são pontuados por grosseiras, mas monumentais, construções proto medievais e todas as personagens parecem envergar roupas que as colocam num plano de existência primordial e longínquo da história humana. Com a ajuda de uma brilhante fotografia de Adam Arkapaw, Kurzel filma as faces humanas com tanta febril alienação como as paisagens nebulosas da Escócia, encontrando em ambas uma pavorosa intensidade maligna. Por último, a montagem e monstruosa sonoplastia conferem a todo o edifício do filme uma qualidade que mais se aproxima de um pesadelo sufocante do que de uma obra de requintada dramaturgia renascentista.
Tal pesadelo parece marcar a constante existência mental deste Macbeth, cuja atitude e erráticos comportamentos o aproximam mais de um soldado paralisado e enlouquecido por stress pós-traumático do que de um manipulador maquiavélico. Como essa personagem titular, o talentoso Michael Fassbender é um vulcão pulsante de ameaçadora insanidade e animalescos impulsos. Longe da articulação obsessiva e imensamente teatreira de Laurence Olivier nas suas icónicas adaptações de Shakespeare, Fassbender está mais próximo de Marlon Brando, com diálogos sussurrados e uma insistência imparável em expor os mais negros recantos da psique de sua personagem.
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Por muito fascinante que seja esta versão traumatizada e fogosamente volátil da personagem titular, é a interpretação de Lady Macbeth que realmente merece louvor e análise extensiva. Nas mãos de Marion Cotillard e sob a alçada deste ousado argumento, esta figura, tantas vezes caracterizada como uma figura de monstruosa anti-maternalidade, é tornada numa mãe traumatizada pela perda, que vê na ambição desmesurada uma nova força para viver. O seu papel, ativa influência do enredo e desenvolvimento psicológico são expandidos, com novos momentos a serem visualizados ou reinventados, como Lady Macbeth a observar o cadáver de Duncan, ou a execução de Lady Macduff e seus inocentes filhos. Esse crime, outrora cometido nas sombras, é aqui tornado evento público, com Lady Macbeth a ser forçada a testemunhar os horrendos frutos das suas manipulações do marido. A salientar ainda, é a icónica cena de sonambulismo de Lady Macbeth. Pela primeira vez no cinema, temos aqui uma Lady Macbeth que realmente parece exausta ao ponto de desfalecer, estando todo o momento envolto numa névoa de trágica serenidade. Na sua tonalidade mais atónita que histérica, Cotillard cria nestes minutos uma das mais espetaculares passagens da sua carreira, apresentando-se como um caco humano, demasiado destruído para ser melodramático ou gritante, mas não por isso menos impactante no seu remorso. O toque de final génio neste solilóquio é mesmo a audiência espectral para a qual ela profere as suas palavras, uma escolha de cruel génio que desfere um golpe de doloroso choque.
Os dois atores principais trazem uma carnalidade usualmente ignorada pelas adaptações mais respeitáveis e mainstream da obra do bardo, criando personagens viscerais e quase agonizantes de observar. No entanto, o resto do elenco não é menos competente, estando apenas limitados pela brevidade de seus papéis e pelo claustrofóbico foco de Kurzel nos dois ciclones de trauma, perda e ambição que protagonizam a tragédia.
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No final, esta versão de Macbeth revela-se como uma estonteante e violenta visão da velocidade alucinante pela qual o poder rapidamente semeia violência, ambição, amoralidade e desumanas decisões. Temas como o conflito entre paganismo e cristianismo em estado primitivo são amplamente sugeridos, poucas vezes expostos com qualquer sombra de nuance e subtileza, com Kurzel a usualmente preferir gritos a sussurros no seu estilo. Com tudo isto dito, há que perguntar: Será esta a mais fiel e inteligente adaptação desta peça? Não. Mas é uma interpretação e tal é raro quando olhamos o panorama das adaptações cinematográficos desta obra, onde a coragem e a impetuosidade artística parecem sempre ser postas de parte em prol de uma banal e sufocante banalidade. Não será preferível uma reinterpretação ousada e provocatória, com tantos problemas como triunfos, que apenas mais uma tradução literal?
O MELHOR: A febril reinterpretação das motivações dos dois protagonistas.
O PIOR: A completa falta de subtileza na gritante abordagem de Kurzel.
Título Original: Macbeth
Realizador: Justin Kurzel
Elenco: Michael Fassbender, Marion Cotillard, Paddy Considine, David Thewlis, Sean Harris, Elizabeth Debicki
NOS | Drama | 2015 | 113 min
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