Venice Sala Web | Malaria, em análise

Um jovem casal iraniano tenta fugir da sua terra em direção ao Teerão no mais recente filme do cineasta Parviz Shahbazi, Malaria. Tal como todos os filmes presentes no Venice Sala Web, esta obra foi exibida no Festival Internacional de Veneza e está, de momento, disponível no Festival Scope.

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Malaria, o sexto filme do iraniano Parviz Shahbazi, começa com uma cena misteriosa e críptica. Vemos mãos a remexerem num telemóvel sem bateria, pelas luvas e o discurso que ouvimos, sabemos que se trata de uma investigação da polícia e que o telemóvel poderá conter respostas. Não nos é dada mais nenhuma informação antes dos investigadores ligarem o aparelho à corrente. Rapidamente somos mergulhados num novo registo, nos vídeos guardados no aparelho, e vamos assim testemunhando os primeiros momentos da história de Samira e Murry, um casal de namorados que está a fugir da sua terra e estão a tentar apanhar boleia para o Teerão. Eles acabam por conseguir a ajuda de Azi, o membro de uma banda que leva o casal na carrinha dos instrumentos, sem saber os problemas que eles lhe vão trazer. É que Samira está em fuga do pai e do irmão e, para os confundir e não revelar as suas verdadeiras intenções, ela inventou uma história de rapto para justificar a sua ausência.

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Mas, mesmo antes do esquema de Samira e Murry começar a desdobrar-se e revelar as suas convolutas complexidades, o filme acaba por abandonar o registo do telemóvel. Shahbazi vai voltando a ele, mas, durante a restante duração de Malaria, vamos testemunhando tanto os vídeos a que a polícia tem acesso como a história que a câmara do telemóvel não capturou. Por esse meio e pelo caráter de algumas das filmagens, o telemóvel e as novas tecnologias vão-se tornando em fascinantes conflagrações de ideias e conceitos. Por um lado, estes jovens usam estas tecnologias como meio de autoexpressão numa sociedade que os tenta reprimir, por outro a apresentação que eles fazem de si mesmos quando sabem que estão diante de câmaras acaba por revelar quão enraizadas na sua mente estão algumas tradições e convenções. No final, as próprias personagens parecem começar a aperceber-se das possibilidades do seu aparelho, do modo como um vídeo fora de contexto pode tornar algo fictício ou ritual numa nova realidade para quem o vê.

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Esse tipo de exploração pode sugerir algo reminiscente dos filmes vanguardistas de Jafar Panahi, Abbas Kiarostami ou mesmo Mohsen Makhmalbaf, onde vários níveis de meta textualidade se conjugavam em filmes híbridos onde a membrana porosa entre a realidade e a ficção é aniquilada. No entanto, mesmo que Shahbazi tenha chegado a trabalhar ao lado de Panahi no magnífico O balão branco, este cineasta não é portador do mesmo tipo de génio desses seus compatriotas. Isso é notório em várias ocasiões, mas especialmente quando o filme se perde nas ruas do Teerão no que, segundo as palavras do realizador em recentes entrevistas, é uma suposta carta de amor à cidade, ao estilo dos filmes de Panahi ou do que Fellini fez com Roma.

É verdade que a câmara de Shahbazi acaba por registar vários momentos dispersos que sugerem uma cidade a borbulhar de vida e ideias. Veja-se, por exemplo, o homem que assobia músicas de Ennio Morricone no metro, as mulheres insistentes que importunam as pessoas para as “entrevistarem” na rádio, a banda titular a encher as ruas de música ou mesmo o insólito tableau de um leão a ser lavado no meio da estrada a partir de uma boca-de-incêndio. Só que, apesar de tudo isso, a mise-en-scène nada faz para definir o espaço que envolve as personagens, preferindo sempre composições e enquadramentos onde a figura humana se impõe como elemento central de foco, e a cidade é mera decoração periférica. Reduzir Teerão a um pano de fundo não nos parece ser uma boa celebração da sua maravilha e, se essa era uma das principais intenções do projeto, então podemos justamente apontá-lo como um fracasso nesse ponto.

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Uma fragilidade ainda maior de Malaria é quão indefinidas as suas personagens acabam por ser. Muito do conflito que propulsiona todo a narrativa centra-se na relação amorosa entre Samira e Murry, mas essa ligação emocional entre os dois nunca é verdadeiramente estabelecida pelo guião e os atores fazem muito pouco para resolverem isso. Enquanto Saghar Ghanaat ainda se vai redimindo com pontadas de inspiração momentânea como a cena em que Samira tem de se esconder do pai e do irmão e pede a ajuda de Azi, mas Saed Soheili, no papel de Murry, é uma perfeita folha em branco. Na escassez de especificidade humana que suporte o edifício narrativo, esperaríamos que a execução servisse para equilibrar o filme mas, como já dissemos anteriormente, isso não acontece.

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Tudo isso contribui para uma experiência bastante frustrante. Dizemos tal coisa, pois o filme mostra várias vezes que tem nobres intenções e que, noutras mãos, poderia ter sido uma fascinante análise crítica e apaixonada de Teerão e da sociedade iraniana. Cenas como uma bizarra visita a um criador de pintainhos, a estadia numa fábrica que serve de dormitório masculino ilegal ou os problemas do casal em encontrar um hotel que os aceite sem uma autorização da Polícia de Moralidade expõem uma fascinante perspetiva que podia ter resultado numa obra maravilhosa. Infelizmente, para si e para nós, a audiência, Malaria acaba por ficar aquém das suas possibilidades e a sua pueril narrativa e mecanismo do telemóvel acabam também por vergar com o peso da sua desmesurada ambição.

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O MELHOR: Os momentos captados nas ruas de Teerão durante as verdadeiras festividades noturnas em Julho de 2015, aquando do acordo nuclear entre o Irão e potências internacionais.

O PIOR: A estruturação caótica, imprecisa e assassina de qualquer potência dramática de um enredo que, por si só, já é demasiado convoluto para o seu próprio bem.


 

Título Original: Malaria
Realizador:  Parviz Shahbazi
Elenco: Saghar Ghanaat, Saed Soheili, Azarakhsh Farahani, Azadeh Namdari
Festival Scope | Drama | 2016 | 90 min

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