MOTELx ’16 | Under the Shadow, em análise

Durante os anos 80, quando o Irão estava debaixo de fogo, uma mãe e filha são obrigadas a confrontar os tormentos e aparições demoníacas daquele que é um dos filmes mais assustadores do ano, Under the Shadow.

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A maior parte do cinema de terror atualmente produzido baseia a sua imagética numa longa tradição originalmente germinada no folclore europeu. As criaturas desses mitos e histórias, têm vindo a ser transmutadas em ícones e arquétipos, tornando-se mesmo em códigos universais para uma certa experiência de medo e adrenalina na sala de cinema. Dominar esse classicismo universal tem os seus méritos, mas também há que se valorizar propostas que tentam fugir a essas inspirações europeias, ao mesmo tempo que se alimentam das gramáticas cinematográficas por elas influenciadas. Tal é o caso de Under the Shadow, um filme britânico de um cineasta iraniano, Babak Anvari, que se apresenta quase como o Babadook deste ano. Só que desta vez, o claustrofóbico drama sobre uma mãe e sua criança isoladas num pesadelo ganha dimensões muito especificamente iranianas, tanto a nível cultural e histórico, como ao nível do próprio monstro que é um Djinn.

Antes de falarmos mais dos horrores provocados por esse malicioso espírito que vem com o vento, há que contextualizar e definir um pouco a narrativa em questão. Durante o final violento da guerra entre o Irão e o Iraque, nos anos 80, deparamo-nos com uma família a viver num apartamento situado no centro do Teerão que, aquando da narrativa, se encontrava debaixo de fogo. Quando Under the Shadow começa, Shideh acabou de ser rejeitada pela faculdade onde estudava medicina antes da revolução e o seu ressentimento é palpável através do ecrã, acabando por contaminar a frágil estabilidade familiar entre ela e o seu marido Iraj, um médico que nunca aprovou as aventuras ativistas da sua mulher que agora a impedem de continuar a sua educação. No entanto, há pouco tempo para tais ponderações, pois Iraj é rapidamente chamado pelo dever militar e parte para o campo de batalha, deixando Shideh a cuidar da sua filha Dorsa no apartamento.

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Ao longo dos dias seguintes à sua partida, estranhos eventos começam a registar-se e, por muito que Shideh o tente negar com a sua lógica fria e desprezo por superstições, os eventos vão ganhando um caráter cada vez mais sobrenatural. Mesmo assim, os verdadeiros horrores fantasiosos demoram a chegar na sua plenitude e, entretanto, vamos vendo como a volátil relação entre mãe e filha se desenvolve em isolamento, especialmente quando um míssil rebenta com o telhado do prédio e despoleta a partida de todos os seus vizinhos. Shideh também tem sítio para onde partir, a casa dos seus sogros, mas o seu orgulho e antipatia pela família do marido levam a que ela adie a viagem até que já é quase tarde demais.

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Um pormenor importante a mencionar é que, quando claramente vemos o Djinn, a criatura materializa-se sob a forma de um vulto coberto com um chador florido. Acrescente-se isto a todos os outros pormenores narrativos, como o facto de Shideh raramente cobrir a cabeça a não ser quando estritamente necessário, e temos um pesadelo metafórico sobre a opressão feminina no Irão pós-revolucionário. O Djinn torna-se assim a conflagração demoníaca das inseguranças da protagonista enquanto mãe e mulher, assim como de todas as barreiras e injustiças perpetradas contra ela pela sociedade devido ao seu género. Num dos momentos de maior absurdo e horror realista, Shideh é presa e ameaçada com chicotadas porque, numa instância de puro pânico, correu para a rua com a filha nos braços sem pausar para cobrir os cabelos. Quando as autoridades lhe dizem que não lhe pode acontecer coisa pior do que ser apanhada na rua em tais preparos, quase temos um momento de humor, afinal, acabámos de fugir de um apartamento tornado num pesadelo à la Repulsion de Polanski, onde os monstros, ao contrário do que acontece no clássico do cineasta polaco, são bem reais.

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É claro que, para esta crítica social e ideológica funcionar, Under the Shadow não se pode apoiar meramente em alegorias demoníacas e momentos esporádicos de sátira institucional. Na verdade, o peso dessa responsabilidade é colocado maioritariamente sobre os ombros da protagonista e sua complexa personalidade. Shideh, interpretada por Narges Rashidi, é um milagre de personagem, fugindo aos simplismos que facilmente se poderiam ter abatido sobre ela. Esta é uma mulher orgulhosa e com uma personalidade abrasiva, com comportamentos maternais que às vezes sugerem negligência ou crueldade, mas que, não obstante isso, é uma pessoa merecedora das dignidades que lhe são negadas pelo sexismo intrínseco da sociedade iraniana. O trabalho de Rashidi é estupendo, nunca limando as arestas vivas da sua personagem, e, quando emparelhado com um texto inteligente e perspicaz, isso resulta numa das melhores protagonistas de um filme de terror nas últimas décadas e numa prestação que pulsa com energia humana.

Não pensem, no entanto, que Under the Shadow é uma simples showcase para a sua atriz principal. Já aqui elogiámos as suas ambições políticas e o seu texto, mas há tanta mestria cinematográfica em exposição que várias páginas poderiam ser cheias somente com celebrações. Para começar, o realizador Babak Anvari afirma-se aqui como uma das vozes mais importantes do terror contemporâneo, usando os truques mais clássicos do género com uma precisão de imensa elegância e eficácia. O modo como a sua câmara saboreia os detalhes do apartamento, ao mesmo tempo que vai sugerindo os vazios indefinidos onde podem aparecer horrores é estupendo. A mise-en-scène neste filme é, aliás, algo fulcral, pois a nossa perceção do espaço e sua relação com os humanos nele inseridos vai sendo pervertida ao longo da narrativa de tal modo que a mesma sala passa de uma imagem de conforto familiar, completo com um leitor de cassetes secreto, a um portal para um mundo de pesadelos, com a televisão a ser um espelho negro para vermos o teto a pulsar como um organismo prestes a expelir algum dejeto maligno.

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Para fãs do cinema de terror, no entanto, mais do que qualquer individual feito técnico, será pertinente mencionar quão assustador o filme consegue ser. A partir de uma grande economia de sustos, Anvari vai construindo uma atmosfera densa em pânico constante, onde o desconforto e certeza que algo horrível vai acontecer a nunca deixarem a mente do público. A tensão vai gradualmente aumentando, até que o terceiro ato, quando a mãe e filha estão sozinhas no prédio, a ganhar dimensões quase apocalípticas, tal é o horror sugerido pelos ritmos violentos. A montagem, em conjunto com o som, é tão admirável que temos de conceder a Under the Shadow a muito especial honra de ter o mais eficaz jump scare de toda esta edição do MOTELx. Nós sabemos que vem aí um choque, o silêncio está a preparar-nos, mas o ato monstruoso é tão diferente de tudo o que vimos anteriormente no filme e a sua velocidade é tão grande que quase sentimos o coração a sair pela garganta.

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Em suma, como o retrato de uma família em crise, Under the Shadow é inteligente e necessariamente complexo. Como um ataque crítico às injustiças sociais que se abatem sobre as mulheres iranianas, é uma bizarra e poderosa proposta cinematográfica. Como retrato de uma mulher complexa e presa numa situação insólita que a leva aos limites da sanidade, é um milagre. E, finalmente, como um filme de terror, este filme é um triunfo tão fenomenal que qualquer fragilidade se torna irrelevante. Under the Shadow é absolutamente, inegavelmente e irrevogavelmente essencial. Não percas!

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O MELHOR: A personagem principal, tanto a sua complexidade textual, como a prestação exemplar da atriz e toda a produção cinemática que se desobra à sua volta e evidencia a sua força.

O PIOR: Um momento rico em CGI, onde os efeitos demonstram uma rudimentaridade que pouco convence e acaba por distanciar as audiências da emoção visceral do clímax.


 

Título Original: Under the Shadow
Realizador:  Babak Anvari
Elenco: Narges Rashidi, Avin Manshadi, Bobby Naderi, Aram Ghasemy
MOTELx | Drama, Terror, Thriller | 2016 | 84 min

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CA

 

One thought on “MOTELx ’16 | Under the Shadow, em análise

  • Concordo plenamente. Definitivamente o novo tema dos meus pesadelos! E o último plano? Fiquei arrepiado. O filme não me saiu da cabeça nas 8 horas seguintes.

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