Árvores pensam e a infância portuguesa | Festival de Veneza 2025 (Dia 10 e 11)
O Festival de Veneza 2025 chega ao fim e estes diários também. Antes do Leão de Ouro ser revelado amanhã aliás como os outros premiados, vimos árvores que filosofam, cineastas em colapso, melodramas chineses, polícias dominados por algoritmos e Manoel de Oliveira a devolver-nos a infância em 4K.
O Lido continua por agora a ser um espelho do mundo e mesmo a fechar esta 82ª edição do Festival de Veneza 2025: ora místico, ora grotesco, ora apocalíptico. Nos últimos dias, vimos de tudo: uma ginkgo biloba a filosofar melhor que muitos filósofos, Franco Maresco a transformar o cinema num funeral de si mesmo, amores chineses que confundem redenção com castigo, Paris futurista dominada por polícias-robôs e, para fechar, a infância portuguesa a renascer em 4K com Manoel de Oliveira.
O silêncio eloquente das árvores
“Silent Friend”, de Ildikó Enyedi, é um daqueles filmes que parecem nascer da terra, regados com filosofia barata, poesia cara e rara no Festival de Veneza 2025:. A premissa: uma ginkgo biloba a observar a humanidade ao longo de um século. Parece ficção científica espiritual, mas a húngara Enyedi não quer fazer cinema new age de Instagram, quer perguntar-nos, com toda a solenidade possível, o que significa ser árvore.
Claro que não sabemos. Nem ela. Mas o filme avança como uma meditação sobre a curiosidade humana, a humildade científica e a pequenez da nossa arrogância. Três épocas (1908, 1972, 2020, em plena pandemia), três histórias, três tentativas de tocar o invisível. Pode soar pretensioso (e é um pouco), mas também é um filme que tem momentos de beleza rara. É cinema para quem ainda acredita que olhar uma folha pode ser mais revolucionário do que abrir o TikTok.
Franco Maresco contra o mundo (e contra si mesmo)
Se Enyedi procura sentido no silêncio, Franco Maresco procura, o contrário no seu regresso ao Festival de Veneza 2025:: barulho, caos, insultos, auto-flagelação. “Un film fatto per Bene” é mais uma viagem masoquista do realizador italiano que parece filmar sempre contra a sua própria paciência. O filme sobre o actor e dramaturgo italiano Carmelo Bene (1937-2002) nunca chega a ser filme, porque Maresco briga com o produtor, desaparece do set e transforma o processo num tribunal onde todos testemunham contra todos.
No fundo, Maresco filma a sua própria ruína como quem escreve um epitáfio. É corrosivo, apocalíptico, hilariante, um retrato de um cinema (dentro do cinema) que já não acredita em salvação, mas insiste em morrer de pé, cuspindo insultos ao mundo. É um filme demasiado italiano, e que não faz muito sentido estar na competição internacional, por mais mérito que tenha.
Amores e culpas à moda chinesa
Em “The Sun Rises on Us All”, Cai Shangjun volta ao melodrama moral que só o cinema chinês ainda consegue levar tão a sério. Um homem sacrifica-se por amor, leva com uma sentença por um crime que não cometeu e, quando anos mais tarde reencontra a amada, percebe que redenção não é sinónimo de perdão.
É cinema feito de lágrimas contidas e despedidas definitivas aqui no Festival de Veneza 2025. O filme é clássico, pesado, quase antiquado, mas também implacável e belo de sensações e sentimentos. Porque nos lembra que os grandes gestos românticos, no fundo, raramente trazem recompensa. Às vezes trazem apenas arrependimento.
Paris distópica com cães de guarda digitais
Cédric Jimenez apresentou “Chien 51” fora de competição (e como filme de enceramento do Festival de Veneza 2025) trouxe talvez o que faltava até agora: tiros, suspense e inteligência artificial a mandar na polícia de Paris.
A ALMA, um sistema preditivo que sabe mais do que os humanos, transforma a cidade numa prisão invisível. Quando o seu criador é assassinado, dois polícias — ela, dedicada; ele, desiludido — tentam resolver o caso e descobrem que a justiça ficou pelo caminho.
É o último capítulo de uma trilogia policial, mas aqui Jimenez troca o realismo cru por distopia sci-fi. É entretenimento musculado com ambições de tragédia grega: Sófocles em versão Netflix. O resultado? Um filme que põe a pergunta essencial: quem guarda os guardiões quando os guardiões são algoritmos?
O regresso da infância portuguesa
E no meio de tanta tragédia e distopia, o Festival de Veneza 2025 devolveu-nos também uma das memórias mais belas do cinema português: “Aniki-Bóbó”, de Manoel de Oliveira, restaurado em 4K. O único representante de Portugal neste Festival de Veneza 2025.
Há filmes que não envelhecem, porque não são apenas cinema, são pedaços de nós. Ver de novo o Porto dos miúdos pobres, das culpas e dos sonhos, é como abrir uma gaveta antiga da nossa própria casa. Para mim, foi regressar ao sofá da infância, ao avô que me mostrou o filme numa televisão a preto e branco, ao primeiro medo e ao primeiro amor que o cinema me ensinou.
Num festival onde todos competem para inventar futuros, foi Oliveira quem nos lembrou que às vezes basta olhar para trás. E que a infância, quando é filmada com verdade, não precisa de restauração digital: já é eterna.
Conclusão: #Veneza82, entre a árvore e o algoritmo
Estes dois dias de festival, os últimos aliás, mostraram um arco curioso: de uma árvore milenar que nos pede humildade até a uma inteligência artificial que nos rouba humanidade. Pelo meio, artistas que se auto-destroem e amantes que não sabem perdoar. O cinema continua a ser isto: um lugar onde a vida se exagera até ao limite, mas onde basta um filme português de 1942 para lembrarmos que a maior invenção do cinema é a simplicidade.
JVM