Maravilhoso Boccaccio, em análise

Em Maravilhoso Boccaccio, os irmãos Taviani tentam trazer ao cinema contemporâneo, o humor, moral e desavergonhada carnalidade de alguns dos mais célebres contos da literatura italiana.

maravilhoso boccaccio

O Decameron, a magnum opus de Giovanni Boccaccio é um dos textos essenciais na história da literatura europeia e tem inspirado artistas desde a sua criação no século XIV. Na literatura, autores como Chaucer, Shakespeare ou Poe foram visivelmente influenciados pela coleção de 100 contos de humor, tragédia, sexo, blasfémia, moral ou hedonismo, e até no cinema vemos o impacto de Boccaccio. Alguns dos melhores autores do cinema italiano já se propuseram a traduzir alguns contos dessa centena para o cinema, como Vittorio de Sica, Federico Fellini, Marco Monicelli, Luchino Visconti e Pier Paolo Pasolini e agora, os irmãos Paolo e Vittorio Taviani juntam-se ao clube com o seu Maravilhoso Boccaccio.

Os irmãos pegam em cinco das histórias do Decameron e adaptam também para o cinema a narrativa em que todos esses contos se encaixam, algo que nenhum desses outros cineastas acima mencionados tentou fazer. Na Florença do século XIV, a peste negra assola a cidade e um grupo de mulheres aristocratas e seus companheiros decide fugir para o campo, onde se instalam num grande casarão e se distraem contando histórias sobre o amor.

maravilhoso boccaccio

Na introdução à Florença assombrada pela sombra da peste bubónica, os irmãos Taviani aplicam o seu usual virtuosismo e economia cinematográfica. A primeira imagem do filme é também a sua mais poderosa, um jovem coberto de pestilências suicida-se, saltando do telhado de uma catedral. Nas ruas, as pessoas caminham ferverosamente ignorando os cadáveres que se espalham pelos cantos, enquanto cobrem as faces com flores na esperança de filtrar o ar e bloquearam o horror da doença.

Lê Também: Top 10 filmes do cinema italiano

Infelizmente, depois desses momentos iniciais, o filme nunca volta a demonstrar tal mestria ou economia. Isso torna-se particularmente evidente quando começamos a ouvir e ver as histórias de Boccaccio serem encenadas pelos Taviani. Quando olhamos para o genial trabalho de Pasolini no seu Decameron, vemos um filme que transpira erotismo, humor e blasfémia e que parece ter sido filmado na imundice da Itália medieval prestes a desabrochar no Renascimento. Quando vemos semelhantes contos sob a direção dos Taviani, temos pouco mais que uma apresentação banal, desinspirada, intrinsecamente estéril e com um sentido de humor cinematográfico que apenas poderá satisfazer os mais transigentes pré-adolescentes.

maravilhoso boccaccio

Como é possível que histórias tão desavergonhadamente sexuais como as aventuras eróticas de um par de freiras possam ser tão estéreis e modestas? Numa cena de outro conto, em que uma jovem consuma a sua paixão por um escultor, a câmara dos irmãos é tão púdica que parece estar a criticar as personagens e sua deliciosa despreocupação hedonista. Qualquer pessoa que tenha lido uns quantos contos de Boccaccio poderá certamente afirmar que tudo isto é uma traição profunda ao trabalho do mestre literário italiano e, especialmente considerando o título do filme, esse é o mais pernicioso de todos os pecados cinematográficos praticados aqui por estes realizadores octogenários.

No passado, os irmãos Taviani conseguiram pegar em obras do passado, como Goethe, e injetar nas suas palavras e ideias uma contemporaneidade vibrante, não os tornando menos familiares aos apreciadores de literatura. Aqui, o máximo que eles fizeram foi embalsamar os textos do autor que se propõe a homenagear, esvaziando-os de qualquer vitalidade. E essa falta de energia humana é ainda mais horrenda da quando chegamos ao fim do filme e a sua mensagem de celebração da vida chega ao seu apogeu. Quando os casais de contadores de histórias dançam à chuva, conseguimos ver pouco mais que um grupo de atores encharcados num exercício de triste pantomima do que alguém lhes disse ser o comportamento de pessoas felizes e cheias de fulgurante juventude.

maravilhoso boccaccio

Mesmo os atores mais reconhecíveis, mais presentes nos contos que na narrativa florentina, são completamente castrados por uma notória falta de direção. Os aspetos formais não os ajudam, há que apontar, com a montagem desenxabida, sem sentido de tonalidade emocional, a ser de particular desonra. Também os figurinos são uma catástrofe, conseguindo dar algumas cores vivas ao filme, ao custo de parecerem uns trapitos encontrados no espólio de uma companhia de teatro amador falida. Quando se comparam esses aspetos com a obra-prima de Pasolini, só se tem vontade de chorar. Afinal, o que aconteceu aos irmãos Taviani para terem criado esta mediocridade?

Lê Ainda: O Conto dos Contos, em análise

Os seus filmes mais recentes, com exceção deste, são obras de grande impetuosidade, independentemente dos seus resultados. Face a esses trabalhos, Maravilhoso Bocaccio parece um mau filme televisivo feito por realizadores em trapalhão início de carreira. A única virtude de todo o exercício é a fotografia de Simone Zampagni, que, apesar de alguns momentos em que a iluminação é enfaticamente exagerada e demasiado plana e intensa, consegue conjurar imagens com uma formalidade reminiscente de frescos renascentistas. A ironia disto é que, segundo os próprios realizadores, a intenção do filme era propor o ato de contar histórias e celebrar o amor como algo a ser valorizado na nossa sociedade contemporânea, que parece ter-se esquecido disso mesmo. No final, a beleza pictórica apenas relembra como tal modernização ou criação de empatia apenas resultou num estonteante fracasso.

maravilhoso boccaccio

O MELHOR: A já mencionada fotografia, suas cores vivas, composições classicistas e elegante apropriação das linhas arquitetónicas dos edifícios usados para filmar Maravilhoso Boccaccio.

O PIOR: Para além de todas as fragilidades já apontadas há que referir quão aborrecido todo o filme é. Sem energia, humor, sofisticação literária ou investimento emocional, os contos de Boccaccio são pouco mais que soporíferos abortos narrativos perfeitos para quem desejar usar a sala de cinema como local para uma boa sesta.


 

Título Original: Maraviglioso Boccaccio
Realizador:  Paolo & Vittorio Taviani
Elenco: Riccardo Scamarcio, Kim Rossi Stuart, Eugenia Costantini
Alambique Filmes| Comédia, Drama, Romance | 2015 | 120 min

maravilhoso boccaccio

[starreviewmulti id=18 tpl=20 style=’oxygen_gif’ average_stars=’oxygen_gif’] 


CA

 

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *