Uma Guerra, em análise

Em Uma Guerra, o realizador Tobias Lindholm examina as questões morais e éticas subjacentes a uma decisão feita no calor da batalha, e cujas consequências são desastrosas.

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Apesar de muitas vezes esses filmes serem relegados exclusivamente ao circuito dos festivais, é certo que o cinema contemporâneo não está em escassez de obras que retratem a realidade da guerra na sua conjuntura atual. Infelizmente, muitos desses filmes têm a tendência a repetirem suas ideias e temas numa espiral sem fim e generosamente atestada de padronização temática e moral. O que também não faltam são filmes europeus de estética realista, cheios de grandes planos tremidos, paletas cromáticas acinzentadas e ritmos tão lentos que quase tornam os filmes numa espécie de soporífero cinematográfico para audiências com pouca paciência ou generosidade cinéfila. Uma Guerra, o mais recente filme de Tobias Lindholm e um dos nomeados ao Óscar de Melhor Filme numa Língua Estrangeira do ano passado, é um perfeito exemplo de ambos esses tipos de filme.

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No entanto, apesar de padecer de uma opressiva banalidade estética, é difícil descartar Uma Guerra como uma obra comum e esquecível. É certo que o filme não contém uma única imagem minimamente memorável ou cinematicamente sofisticada e que as escolhas estilísticas de Lindholm quase parecem uma paródia do cinema europeu realista, mas o filme está abençoado com um genial argumento e isso vale de muito.

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Ou pelo menos a sua segunda metade está abençoada com um genial argumento, pois este é um filme construído em volta de uma estrutura agressivamente bifurcada. Na primeira metade temos um modesto filme de guerra sobre uma companhia militar europeia no Afeganistão. No centro do drama está o Comandante Claus Pedersen, que, aquando de um ataque dos talibãs que coloca em risco mortal um dos membros da sua equipa, ordena um ataque aéreo que resulta em zero casualidades dos seus atacantes, mas em mais de uma dezena de mortes civis, a maioria dos quais crianças. A segunda metade retrata as consequências desta sua escolha e mostra-nos a investigação judicial que se abate sobre o Comandante, já regressado à Dinamarca.

Este tipo de estruturação não será do agrado de muitos, mais acostumados a narrativas com seguras estruturas de três atos fluidamente conjugados, mas a rutura que demarca o meio do filme tem inquestionável valor. Esse valor devém do contraste entre as duas metades e sua simbiótica relação. Primeiro, os cineastas apresentam-nos de modo banal, mas eficiente, um típico filme de guerra passado no campo de batalha desértico. Cada passo narrativo é extremamente previsível, mas há uma perversa familiaridade a todos os procedimentos narrativos, sendo que estamos sempre próximos dos militares europeus, especialmente durante os momentos de maior aflição e caótico horror bélico.

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De certo modo, o aspeto quase televisual dessas cenas de guerra e seus clichés funcionam como um sublime balanço para o drama de tribunal. Aí, os cineastas põem em questão todas as decisões que as personagens tomaram, questionam sua moralidade e ética de um modo que poucas vezes aparece no cinema. A própria câmara, com a sua obsessão por grandes planos, ganha uma agressividade quase interrogatória, fixando-se nos atores, isolados uns dos outros pelos enquadramentos, e colocando ênfase no ato de ouvir e processar informação ao invés de no ato de falar. Com as cenas de tribunal a serem principalmente interrogações de testemunhas dos soldados sob comando de Pederson e discursos da acusação, Uma Guerra acaba por se converter num inteligente estudo de personagem em que é o próprio protagonista que se converte no principal dissecador de si mesmo e sua moral.

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A interrogação e autorreflexão é de tal modo fascinante, que qualquer distração parece ser uma fragilidade e é exatamente isso que acontece com as constantes cenas familiares entre Pederson, sua mulher e seus filhos. Mesmo na primeira metade, Lindholm está regularmente a cortar para a família do comandante, tentando à força impingir esta narrativa a um filme que claramente ficaria melhor sem ela. O cinema, especialmente em casos destes, é uma soberba máquina de empatia, mas o uso da família durante as cenas no Afeganistão parece uma tentativa forçada de manipulação descarada. O realizador quer estabelecer uma ligação emocional com a unidade familiar e humanizar o seu comandante. No entanto, o resultado final é tristemente inepto.

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Não que a execução desses momentos familiares seja horrenda, é apenas a sua integração na estrutura do filme que deixa muito a desejar. O trabalho dos atores é, aliás, o ponto mais forte do filme a seguir ao seu texto, e a prestação de Tuva Novotny como Maria, a mulher de Claus, é uma virtuosa mostra de naturalismo modesto e eximiamente concretizado. Também admirável é o trabalho de Pilou Asbæk que constrói em Claus um pequeno milagre de caracterização opaca e quase minimalista na sua expressividade. Sem mover um único músculo facial, e com um olhar rigidamente imóvel, ele consegue telegrafar mais introspeção e complexidade humana que muitos outros atores conseguiriam em registos mais expressivos.

Os atores conseguem mesmo contornar e corrigir alguns dos mais perniciosos clichés da primeira parte do filme, assim como as fragilidades inerentes às cenas familiares. Uma Guerra é assim uma obra eficiente, que padece de uma grave anemia de originalidade e inovação, mas que se valoriza pela inteligência do seu texto nas partes da história constritas a uma sala de tribunal. É um filme que, na sua cortante evisceração moral e ideológica de uma escola feita na adrenalina da luta entre a vida e a morte, exige à audiência a sua participação intelectual num debate ético sem respostas fáceis. Afinal, a primeira metade do filme já nos é familiar, já aceitamos os seus clichés e sua demagogia sobre os soldados em batalha, mas o que acontece se examinarmos as escolhas subjacentes a tais situações? O que acontece se examinarmos a nossa reação a tais histórias humanas? Uma Guerra tem a coragem e segurança para fazer tais questões e merece respeito por tal.

Uma Guerra

O MELHOR: O questionamento ético e moral que o argumento se propõe a construir na segunda metade de Uma Guerra.

O PIOR: Alguém devia levar Tobias Lindholm a um terapeuta para se perceber de onde vem a sua aversão a cores vivas ou a razão por detrás do seu absoluto terror face ao tripé. Talvez assim possamos evitar mais um filme desinspiradamente acinzentado e filmado quase unicamente com câmara ao ombro numa pueril tentativa de fácil realismo documental.


 

Título Original: Krigen
Realizador:  Tobias Lindholm
Elenco: Pilou Asbæk, Tuva Novotny, Søren Malling, Charlotte Munck, Dar Salim
Lanterna de Pedra| Drama, Guerra | 2015 | 115 min

UMA_GUERRA

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