Maria, Rainha dos Escoceses

Maria, Rainha dos Escoceses, em análise

Maria, Rainha dos Escoceses” é um épico histórico revelador e liberal, que nos oferece um retrato atrevido e provocador das duas monarcas rivais mais influentes do séc. XVI.

Maria, Rainha dos Escoceses
Maria Stuart (Saoirse Ronan) a cavalgar com os seus súbditos.

Unidas pela mesma linhagem sanguínea, mas ostracizadas pelos mesmos valores religiosos antagónicos, que já dividiam as suas irmãs Inglaterra e Escócia, assim permaneceram décadas de costas voltadas, Isabel I (Margot Robbie) e Maria Stuart (Saoirse Ronan), num fastidioso e fustigante impasse pela sucessão do trono inglês. Baseado na obra homónima do historiador britânico John Guy, que procura desmistificar um suposto rótulo adulterado e superficial de femme fatale anacronicamente injurioso, cujo guião de Beau Willimon não se coíbe de exaltar, por vezes podendo cair facilmente na ratoeira percetiva de querer limpar desesperadamente a face histórica de Maria. Mas quer estejamos mais próximos ou mais afastados da verdade psicológica desta rainha de berço, criada nos mimos faustosos da corte francesa de Henrique II, parece-nos seguro afirmar, que só a ideia de ter uma mulher sentada na cadeira do poder, pudesse causar um arrepio misógino numa sociedade altamente patriarcal. Esse é o ponto de partida mais óbvio para a estreante encenadora teatral Josie Rourke, catapultar mais além o orgulho feminista de quem, tal como ela, teve de construir a sua carreira a pulso num mundo dominado por homens.

(…) Rourke, permite (…) relembrar da forma mais sádica e perversa, que os atributos físicos de uma mulher, tanto podem virar a cabeça dos homens  a seu favor, como incendiá-los uns contra os outros, fazendo ricochete contra si mesma.

E que exemplo real mais magnânimo de dignidade e bravura poderia Rourke invocar, senão o afamado conto centenário da lendária rivalidade entre as duas rainhas Tudor, que voltam a renascer para uma quarta iteração cinematográfica, depois de Cate Blanchett (Isabel I) ter derrotado a Armada Espanhola de Filipe II, e Samantha Morton (Maria Stuart) ter conspirado pela última vez contra a sua prima em segundo grau. Mas enquanto o filme de Kapur limita-se a replicar a imagem mais impactante de ambas com base numa reputação pré-adquirida, este de Rourke, começa por reconstruir os arquétipos dessas personalidades a partir das suas fraquezas humanas. E quem melhor do que Beau, para fazer transpirar toda aquela sujidade sussurrante impregnada nas paredes promiscuas de uma corte monárquica, tal como já o faz ardilosamente pelos corredores políticos de “House of Cards”. A sua dramaturgia enrodilha-nos logo num novelo maquiavélico vertical, assim que a bela jovem Maria desembarca sem honras de estado no seu pedaço legítimo de espólio Escocês, e faz ajoelhar a seus pés o seu meio-irmão ilegítimo Lorde Jaime Stuart – Conde de Moray (James McArdle), tendo como pano de fundo aquele colosso neoclássico do Palácio de Holyrood em Edimburgo.

Maria, Rainha dos Escoceses
Isabel I (Margot Robbie) nos seus aposentos.
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E é entre aqueles amplos salões angulares cruzados com mesas infinitas, e candelabros com três gambiarras de velas com cera a derreter numa média luz sombria e secreta, que John Mathieson (O Gladiador) vai pactuando com aquele frenesim burlesco de adulação à rainha Escocesa, chamando ao seu rosto imaculado de porcelana uma certa calidez inerente às caraterísticas morfológicas da sua descendência. Uma tonalidade efervescente que, de resto, se coaduna na perfeição com a ferocidade emocional que Saoirse empresta abundantemente a Stuart, reclamando para si o trono de todas as atenções. Mas Rourke, permite que assim seja apenas para nos relembrar da forma mais sádica e perversa, que os atributos físicos de uma mulher tanto podem virar as cabeças dos homens a seu favor, como incendiá-los uns contra os outros, fazendo ricochete em si mesma. E é mesmo esse o convite de entrada para um bacanal de intrigas doentias e atrocidades repugnantes, que se vão desfolhando diante do olhar resiliente e impotente de Maria, que tenta ripostar com uma frieza diplomática e uma compaixão catolicista, perante a vil ganância daqueles homens do diabo, seus súbditos em eterna negação da sua premente condição de servos. No tête-à-tête, Rourke tenta sorver cada milímetro de sentimento, tal como o faria numa qualquer peça teatral, aonde o mais ínfimo pormenor veicula um propósito, e a capacidade de improviso oral e gestual favorecem uma representação mais fidedigna do momento. E tal é ainda mais verdade, quando imbuída de um discurso de cariz tipicamente shakespeariano, que extirpa da alma e do coração todas as palavras cruas ainda por filtrar.

(…) Quem melhor do que Beau, para fazer transpirar toda aquela sujidade sussurrante impregnada nas paredes promiscuas de uma corte monárquica, tal como já o faz ardilosamente pelos corredores políticos de “House of Cards”.

Olhares subtis e sequiosos, posturas altivas e subservientes. O enredo hodierno de Willimon, alinhado com os movimentos feministas tão em voga, aquece-nos com as óbvias frivolidades passionais e impulsos hedonistas daquela época, sobretudo durante a romaria de emissários ingleses e pretendentes a desposar Maria, que jamais admitiria uma ingerência governativa da sua congénere matriarca. Mas é neste xadrez estadista envolto de especulação e vaidade, que Rourke engrandece ainda mais toda a causa feminina com a adição inopinada de um elenco multicultural, alicerçado pelo excêntrico e requintado guarda-roupa de Alexandra Byrne. Já dizia o ditado: “À mulher de César não basta ser honesta, também tem de parecer honesta”, algo que a maquilhagem kabukiana de Isabel sabe vender como um artifício de força em todo o seu esplendor e glória. E é com essa teatralidade nipónica, que Rourke constrói em Robbie o legado sofrido da “Rainha Virgem”. Os livros didáticos conhecem-na como uma regente gélida e cerebral, mas por detrás daquelas camadas de pó branco, Robbie dá-nos a comoção de uma mulher defeituosa e deformada, que trava uma luta interior contra a masculinização da sua própria natureza. Num circulo viciado de cobiça e testosterona, Isabel não afasta de si o elo empático para com a sua vizinha e parente, algo que Cecil – o seu conselheiro privado, se apressa em vilipendiar, exalando todo o veneno protestante num Guy Pearce eloquente e pomposo, que se aproveita das fragilidades de Sua Majestade como uma entidade parasitária.

Maria, Rainha dos Escoceses
Maria Stuart (Saoirse Ronan) no porto de Leith.
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Mas é na prospeção de um matriarcado dual, que a trama assume particular interesse, numa união de amizade no seu âmago, que o jogo de bastidores se encarrega de erradicar. Mas também Rourke e Willimon sonharam com essa utopia ao manipularem os factos históricos num encontro fictício entre as duas monarcas. Contudo, somos capazes de perdoar tal bicada nas brumas da memória, senão em prol do ponto de clímax da narrativa. Outras fitas épicas como “Rob Roy” ou até mesmo “Braveheart: O Desafio do Guerreiro” distanciaram-se ainda mais dos papiros a tinta dos historiadores, e nem por isso deixaram de ser bem acolhidas pela opinião pública. As belíssimas harmonias corais e instrumentais de Richter, casam simbioticamente o presente e passado como se fossem “nuvens ambientais a flutuar em torno da paisagem…”, que diga-se de passagem, é de cortar a respiração. Os planos panorâmicos de montes e vales encerram em si autênticos quadros pitorescos de uma autenticidade bucólica deslumbrante, fazendo-nos querer saltar para o ecrã. Nota-se, claramente, um cuidado tremendo na recriação de todo o ambiente medieval, com altos valores de produção, que só são ligeiramente beliscados pela omissão da linha temporal dos acontecimentos.

Rourke tenta sorver cada milímetro de sentimento, tal como o faria numa qualquer peça teatral, aonde o mais ínfimo pormenor veicula um propósito…

“Maria, Rainha dos Escoceses” é uma proposição valorosa, que permite aceder ao lado mais romântico e sensível da mente e espírito destas guerreiras rigidamente estereotipadas pela sociedade durante séculos afio e que, talvez, possam rever-se agora numa fita mais despojada de preconceitos. Rourke tem a coragem de reduzir a figura masculina à selvajaria dos seus instintos mais básicos e primitivos, como lobos em peles de ovelha, mas hoje pode fazê-lo, há quatrocentos anos atrás seria decapitada.

Maria, Rainha dos Escoceses
Maria, Rainha dos Escoceses

Movie title: Mary, Queen of Scots

Movie description: “Maria, Rainha dos Escoceses” explora a vida turbulenta da carismática Maria Stewart. Rainha da França aos 16 e viúva aos 18, Maria desafia a pressão de voltar a casar. Em vez disso, regressa ao país natal, Escócia, para recuperar o seu direito ao trono, numa altura em que a Escócia e Inglaterra estão sob o domínio da imperiosa Elisabete I. Cada uma das jovens rainhas vê a sua “irmã” com terror e fascínio. Rivais no poder e no amor, e regentes num mundo de homens, as duas têm de decidir como jogar o jogo do casamento contra a independência. Determinada a governar como mais que uma mera representante, Maria impõe a sua reivindicação ao trono inglês, ameaçando a soberania de Elisabete. Traição, revolta e conspirações em cada uma das cortes põem em perigo ambos os tronos – e mudam o rumo da história.

Date published: 23 de January de 2019

Director(s): Josie Rourke

Actor(s): Margot Robbie, Saoirse Ronan, Simon Russell Beale, Guy Pearce, Ian Hart, Adrian Lester, Brendan Coyle, David Tennant

Genre: Biografia, Drama, História

  • Miguel Simão - 85
  • Cláudio Alves - 45
  • Rui Ribeiro - 90
  • Inês Serra - 80
  • Daniel Rodrigues - 55
  • Catarina d'Oliveira - 60
69

CONCLUSÃO

Maria, Rainha dos Escoceses é rude, é mordaz, é perturbador. É um filme que possui o mérito de nos tocar pela sua brutalidade emocional, não tanto pelo lado bélico, que aqui é quase retirado da equação. Depois dos créditos rolarem, a imagem das duas só poderá sair reforçada!

O Melhor: Saoirse Ronan e Margot Robbie são duas forças da natureza; enredo denso e dinâmico com múltiplas reviravoltas; cinematografia monumental; guarda-roupa e caraterização de luxo; banda sonora verdadeiramente épica.

O Pior: Ausência de uma cronologia; o sotaque escocês de Maria Stuart é discutível; adulteração de facto histórico dividirá opiniões.

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