Venice Sala Web | Maudite Poutine, em análise
Em Maudite Poutine, o canadiano Karl Lemieux explora os submundos do rock marginal e de organizações criminais com uma sublime sofisticação formalista. Tal como todos os filmes presentes no Venice Sala Web, esta obra foi exibida no Festival Internacional de Veneza e está, de momento, disponível no Festival Scope.
É curioso pensar que, em tempos já distantes, o cinema era um meio desprovida de narrativas. No entanto, quando certos cineastas como Alice Guy-Blaché começaram a explorar as possibilidades narrativas desta nova arte, ainda no século XIX, essa abordagem rapidamente se afirmou como a norma, pelo menos no mainstream. Ao longo dos seguintes desenvolvimentos na história do cinema, assistiu-se a uma série de vanguardas, muitas delas com propostas abstratas, mas, regra geral, a maior parte das produções, mesmo as documentais, continuaram a construir-se com base numa narrativa, fictícia ou real. Há até quem defenda que, pelo simples facto do tempo ser um dos fatores intrínsecos do cinema, que todo o seu produto é portador de uma qualidade narratológica, mas isso é uma argumentação que não tem nada que ver com o filme que nos propomos a analisar aqui, Maudite Poutine de Karl Lemieux.
Talvez o panorama cinematográfico em que a abstração e a ausência de narrativa mais perduram nos dias de hoje seja o da curta-metragem. É por isso sempre curioso ver como um realizador, que desenvolveu o seu estilo na esfera hermética das curtas, traduz esses desenvolvimentos para uma longa-metragem. Tal é o caso deste filme, onde o canadiano Karl Lemieux basicamente repetiu a mesma gramática fílmica que tinha utilizado para as suas curtas, especialmente Passage, e a aplicou a uma base narrativa que depois esticou até ter uma obra com cerca de hora e meia de duração. A história em questão centra-se em Vincent, um jovem que rouba drogas a quem não devia e acaba por se tornar num alvo das organizações criminais da zona. Confrontado com a ameaça de violência, ele foge para a companhia do irmão toxicodependente, Michele, para grande mal de ambos. Este é um grande salto na sua filmografia e é, portanto, uma pena que estes esforços do realizador tenham sido, na sua maioria, um redondo fracasso.
Não tomem essa afirmação como uma acusação de falta de qualidade cinematográfica, pois, pelo menos a um nível puramente mecânico e estético, Maudite Poutine é um belíssimo triunfo. Um exemplo disso é uma gloriosa sequência, onde [SPOILERS!!!] Michele se prepara para pegar fogo à sua casa e a si mesmo. Tudo é filmado num grosseiro celuloide de alto contraste, onde o grão é imenso e, com ajuda de uns truques de câmara, a definição da imagem vai variando de modo violento, assemelhando-se à sonoplastia cheia de sons metálicos e rugidos amorfos. Este é uma espécie de flashback ou memória imaginada e tem uma qualidade onírica que em nada detrai da gravidade da situação, ao invés transfigurando-a numa explosão de febril excesso formal, um pesadelo cinematográfico.
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Neste momento específico, a articulação de imagens e sons é o que origina a reação emocional e sensorial da audiência, construindo de modo estritamente formalista uma horrenda tragédia de nível humano. Sublinhamos a importância dessa articulação, pois o que usualmente serviria como energia propulsora de toda esta situação, o desenvolvimento dramático da dinâmica entre os irmãos e a complexidade da personagem em questão, não tem qualquer força. Na verdade, o drama humano de Maudite Poutine é tão frouxo e incompetente, que ameaça enterrar a magnífica virtuosidade técnica no seu túmulo de mediocridade.
A solução para isto não seria um melhor argumento e trabalho de ator, mas sim uma excisão desses elementos por completo. Tendo em conta o passado musical e influências culturais de Lemieux, é fácil de entender o seu interesse neste tipo de explorações de marginais da sociedade, em submundos violentos onde interlúdios musicais servem como pequenos oásis de paz, mas isso não implica que ele saiba traduzir o seu interesse nalguma estrutura narrativa capaz de suportar o peso da sua exploração estética. No final, a história humana é superficial e subdesenvolvida, e as personagens parecem corpos esvaziados de qualquer tipo de energia ou inteligível conflito, tanto interno como externo.
A única instância em que qualquer tipo de enfoque nas personagens e no texto funciona, é uma fala da mãe enlutada de Vincent que, numa recordação cheia de perversa piedade, invoca um dos principais leitmotivs visuais e concetuais de Maudite Poutine, os pássaros que voam em busca de liberdade e da fuga. No final, essa imagem é levada à sua apoteose, com o ecrã a encher-se de seres voadores, reduzidos a manchas em movimento pelos ares. É nestes instantes quase abstratos que Maudite Poutine se afirma como um dos filmes mais interessantes e belos do Venice Sala Web, mas, devido a uma errónea insistência em fazer disto uma longa-metragem narrativa, a sua totalidade é tão superficial quanto é aborrecida. Tal como muitas coisas na vida e no cinema, o todo vale menos que as partes.
O MELHOR: A maravilhosa fotografia a preto-e-branco que foi gravada em fita de 16mm e alto-contraste.
O PIOR: A já muito criticada existência de uma pueril base narrativa.
Título Original: Maudite Poutine
Realizador: Karl Lemieux
Elenco: Jean-Simon Leduc, Martin Dubreuil, Marie Brassard, Francis La Haye, Robin Aubert
Festival Scope | Drama | 2016 |91 min
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