Fiona Apple (foto de Zelda Hallman)

Mês em Música | Playlist de Abril 2020

Na Playlist de Abril, invertem-se os papéis e um álbum reina sobre todos os singles. Num ano de quarentena e adiamentos, veio de surpresa, vimo-lo e venceu.

Estes tempos de pandemia e confinamento não estão a ser nada fáceis para o mundo da música independente, como é óbvio. Desde a queda da venda de discos trazida pela internet (excepção feita ao mercado do vinil), que a principal fonte de receita dos músicos consiste na performance da música ao vivo, promovida tanto pelo circuito dos festivais de primavera e verão, como pela rede de pequenas salas de espectáculo espalhadas pelas cidades dos vários países. Cancelados todos os eventos de música ao vivo e sem o apoio das grandes estruturas ou dos governos, o tecido destas salas de pequeno e médio tamanho, onde a maioria dos artistas independentes ou em início de carreira consegue ter a oportunidade de tocar, está em risco.

A título de exemplo, segundo a BBC, “o confinamento deixou 140 000 artistas, agentes, promotores e técnicos sem um rendimento estável desde o princípio de Março” e “cerca de 82% das salas de espectáculo do Reino Unido correm agora o risco de fechar antes do fim de [Maio], segundo uma sondagem da indústria”. Diz a Rolling Stone que, “sem o apoio do governo federal, mais de 1000 salas de espectáculo dos Estados Unidos estão em risco de fechar”.

Os adiamentos continuam a ser anunciados, oferecendo-nos em troca uma série interminável de singles, que, às vezes muito bons, outras vezes nem tanto, vão preenchendo, embora não muito bem, a paisagem de álbuns que mingua. Mas é uma decisão compreensível, no actual panorama de precariedade da profissão e impossibilidade de entrar em digressão para apresentar e rentabilizar o novo álbum. Ainda assim, houve alguns lançamentos de valor e uma surpresa que arrebatou imediatamente o prémio (mesmo se a competição não era muita, claro).

Playlist de Abril | Os singles

Não foi fácil decidir qual dos singles mais nos entusiasmou este mês. Vezes há em que uma canção sobressai das muitas faixas eficazes que vão colorindo o passar do tempo, conquistando o consenso sem hesitações quando chega a altura de apontar o dedo. Não foi o caso desta feita, mas nem por isso falta valor ao que aqui vos deixamos como o nosso Single do Mês e outros quase nomeados.

Não é todos os dias que uma faixa eletrónica, de tecno experimental, conquista um lugar de eleição nos corações do povo. Quer dizer, talvez nos pés, mas não na alma. Kelly Lee Owens é uma daquelas raras produtoras capaz de criar música para os pés e para a alma, oscilando flexivelmente entre um lugar e outro das nossas pessoas, por vezes ao mesmo tempo, por vezes passando de um ao outro, como é o caso de “Night”, o nosso Single do Mês. Abrindo no registo contemplativo a que Owens nos habituou no seu homónimo álbum de estreia, de 2017, o que começa numa etérea viagem pelos espaços sem confim do cosmos estrelado converte-se numa frenética entrada na pista de dança. Num e noutro momento nocturnos, é a vida e o amor que são celebrados: “It feels so good to be alive. With you.” Tudo dito.

KELLY LEE OWENS | “NIGHT”

Sobre o outro quase vencedor, “Is There Something In the Movies?” de Samia, disse o seguinte a nossa Margarida Seabra: “Filha de dois atores e já bastante familiarizada com a indústria de cinema, Samia não deixa de a questionar. Se por um lado a canção contém referências pessoais, como o presente que lhe foi dado por Brittany Murphy e a interação direta com o “tu” que a desapontou, “I left you in life ‘cause you don’t need my pen/To embellish your noteworthy parts”. Por outro, a reflexão torna-se universal e, tal como Samia, que no videoclipe irrompe pela cena que está a ser gravada pelos dois atores, destruindo a quarta parede, na faixa somos convidados pela artista a fazer o mesmo, “And everyone dies but they shouldn’t die young/Anyway, you’re invited to set”.

Numa atmosfera simples, ao som de uma guitarra acústica, a voz de Samia assume o destaque merecido, guiando-nos pelo seu caminho pessoal em torno da questão, “Is there something in the movies that’s better than my love?”, pergunta à qual, no fundo, ela sabe dar resposta.”

SAMIA | “IS THERE SOMETHING IN THE MOVIES”

Os vencedores do mês passado quase levaram mais um prémio para casa, o que abona a favor do álbum que aí vem. Cada um dos singles divulgados tem sido um tiro certeiro no estilo diverso que desenvolve. Cerebrais no seu experimentalismo mas nunca no sentimento, estas canções constituem experiências únicas que prometem uma grande viagem, mesmo se adiada. Até lá, consolemo-nos com uma das mais meditabundas e nostálgicas faixas do grupo. “Just Let Me” é um pungente pedido de comunicação com o outro, separado do eu por um abismo intransponível, que entrou sem se saber como. Fica no ar, e na triste euforia, a pergunta “Where did our love go?”, superada só pelo repetitivo “Let me get through to you”, capaz de vencer qualquer desistência do eu ou resistência do tu.

BRAIDS | “JUST LET ME”




Playlist de Abril | O álbum do mês

[Em Fetch the Bolt Cutters], mundo e habitação fundem-se na paisagem sonora que envolve a crua voz de Apple, enquanto canta fragmentos de memória retirados de velhos diários, anos de rancor e amargura, confissões de mesquinhez e fragilidade mental, comentários de psicologia feminina, concepções de amor e vislumbres metafísicos. O resultado é um testemunho de genuinidade, a narrativa teatralizada de uma personalidade tão mais vincada quanto mais cresce e amadurece longe da multidão.

Se tamanha sinceridade, expressa em metáforas e versos extraídos do tecido da própria vida, nem sempre redunda num juízo clarividente sobre a experiência humana, pelo menos não falha na descrição cirúrgica e idiossincrática de muitas das vivências que a compõem, nem na imaginação sonora com que as recria. “Heavy Balloon” subsistirá como um dos grandes documentos artísticos da luta contra a depressão. Quando “people like us get so heavy and so lost sometimes/(…) that the bottom is the only place we can find”, quando “the bottom begins to feel like the only safe place that you know”, é então que “I spread like strawberries/ I climb like peas and beans”. Do fundo do oceano para onde se sente atirada, Fiona Apple ressurge e refloresce, ainda outra vez. Embora na poesia de Fetch the Bolt Cutters se enrosque mais o desabafo do que o olhar iluminante, é a sinceridade em si mesma, legitimada pelo talento e pela obra final, que permanece o contributo inestimável de Fiona Apple ao mundo de hoje. Afinal, a música é aquele lugar, oferecido como dom e conquistado na paciência, onde a sua voz “won’t shut up” (Fiona Apple, Fetch The Bolt Cutters, em análise, Maria Pacheco de Amorim).

FIONA APPLE | FETCH THE BOLT CUTTERS

PLAYLIST DE ABRIL | DESTAQUES DO MÊS

  • Ellis, Born Again (Fat Possum, 3 de Abril)
  • Laura Marling, Song For Our Daughter (Chrysalis/Partisan, 10 de Abril)
  • Trace Mountains, Lost In The Country (Lame-O, 10 de Abril)
  • Fiona Apple, Fetch The Bolt Cutters (Epic Records/Sony Entertainment, 17 de Abril)
  • The Mountain Goats, Songs For Pierre Chuvin (Merge, 17 de Abril)
  • Westside Gunn, Pray For Paris (Griselda, 17 de Abril)
  • Weary Eyes, Weary Eyes Ep (Auto-editado, 17 de Abril)
  • Clemency, References Ep (2 B Real, 23 de Abril)

PLAYLIST DE ABRIL | SPOTIFY


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