Katie Dey (foto de Sianne Van Abkoude)

Mês em Música | Playlist de Maio 2019

Coincidência, claro, e há variantes de inglês doutras partes do mundo, mas, em mês de eleições europeias, na Playlist de Maio calhou cantar-se em irlandês.

A meio do mês de Maio, os já lendários Girl Band anunciaram o lançamento de um single para o início de Junho, “Shoulderblades”. Dado o abrupto desaparecimento da banda de todos os radares, depois do cancelamento de uma digressão em 2016 por motivos de saúde mental do efervescente vocalista, Dara Kiely, a notícia não podia deixar de encher os fãs de entusiasmo e, acima de tudo, expectativa. Porque um single sempre é um recomeço e atrás dele pode vir muito mais. Como se não bastasse, outras duas bandas da actual cena de Dublin, de entre as várias que, vindo no encalço dos Girl Band, têm dado que falar, lançaram temas que transformam a nossa Playlist de Maio em qualquer coisa de especial.

Quanto aos álbuns, teria sido perfeito se os Fontaines D.C. tivessem atrasado o lançamento do Dogrel só mesmo para coroar a nossa Playlist de Maio irlandesa, mas como não nos deram esse jeitinho (não são portugueses), temos de nos conformar com incluir Brooklyn e Melbourne. Não que nos custe muito, porque sabe bem algum desalinho. Um dos álbuns que queremos realçar tem contornos bem desalinhados para uma banda tão aprumadinha. Ao outro não falta aprumo, no seu cortar a direito, mais ainda para uma voz e guitarras tão desalinhadas. Quanto ao álbum do mês é só desalinho, desde a alma à produção, de um desalinho que nos arranca do conforto em que nos escudamos da vida. Claro, só podia chegar no último dia do mês, caído do alto ou saído do nada, para desarrumar a casa toda, dar as voltas ao artigo e, ainda por cima, deixar-nos felizes por isso.

Playlist de Maio | Os singles

A marcar a Playlist de Maio temos, antes de mais, o novo single dos Silverbacks, banda de Dublin. “Pink Tide” parece ser o tema titular do álbum de estreia da banda (com o actual alinhamento). Mesmo se nenhum anúncio oficial foi feito ainda, já se sabe que a produção do muito aguardado registo está a cargo de Daniel Fox, baixista dos Girl Band, e toda a evidência aponta para que quer a capa, quer o título sejam as mesmas deste terceiro single. Sobre ele dissemos o seguinte:

“‘Pink Tide’ começa de facto com um motivo ondulado, se bem que sempre dentro do estilo seco e urgente, em staccato, a que a banda já nos habitou, sugestivo de algumas das influências pós-punk e new wave invocadas, como os Television, Talking Heads ou The Fall. O ondulado dá lugar à onda propriamente dita no refrão, onde origens sonoras mais recentes, vindas da década de 2000 (mas não só), afloram melódicas. Neste breve pérola pop, tudo é dito tão bem e sucintamente que cada segmento não faz senão despertar uma sede que se recusa depois a saciar. A acre suavidade do motivo de baixo das estrofes depressa cede o destaque à doce, amargamente curta melodia de guitarra do refrão ou da ponte. O cor-de-rosa vem com travos de perene insatisfação, como em toda a grande obra de arte. Não há dúvida que, nas palavras da banda, o motivo da coda encontrou aqui o lar perfeito.”

SILVERBACKS | “PINK TIDE”

Os Just Mustard são um grupo de rock experimental que vem de Dundalk, na Irlanda. O guitarrista e vocalista David Noonan, a vocalista Katie Ball, o guitarrista Mete Kalyon, o baixista Rob Clarke e o baterista Shane Maguire combinam avalanches sonoras de shoegaze com drones ambientais e uma inexorável tensão pós-punk para criar uma sonoridade única – pensem em qualquer coisa como os Viet Cong liderados pela Bilinda Butcher -, que já lhe valeu uma nomeação para o Choice Music Prize (o equivalente irlandês para o Mercury Prize) com o seu álbum de estreia Wednesday, produzido pela própria banda e lançado o ano passado por meio da Pizza Pizza Records.

Playlist de Maio 2019
Just Mustard (Karl Walsh)

No seguimento desta aclamação inicial, os Just Mustard quiseram editar um duplo single, do qual uma das canções, “Frank”, saiu no dia 16 de abril. Um mês depois chegou “October”, uma peça de ameaçador sublime. Sobre uma ominosa batida, lenta e espaçada, flutua impassível a voz de Katie Ball, exasperando-se ligeiramente só em certos finais de frase. O seu canto hipnótico e encantatório permanece imperturbável, apesar das guitarras distorcidas que, quais serras circulares, entram e saem repentinas por entre laivos estridentes de pura fantasmagoria. O caos e terror permanecem sempre dentro das baias do controle humano, num esforço artístico que recorda a racionalidade última a que todos os materiais se submetem, por mais indomáveis ou atemorizadores que sejam. Mesmo quando a serra elétrica tem a última palavra, é o sossego apático da voz que fica na memória.

JUST MUSTARD | “OCTOBER”




Playlist de Maio | Os álbuns

O primeiro álbum saído de Brooklyn para que desejamos chamar aqui a atenção é, então, o tal disco desalinhado da banda aprumadinha – os Vampire Weekend, pois quem mais? – que nos sentimos tentados a aparar, cortando-lhe algumas das canções de valor mais discutível. Mas, como reconhecemos na nossa crítica «só um álbum duplo permitiria pôr lado a lado a alegria e a tristeza entre as quais ziguezagueia a existência. Chegada a maturidade, “mais do que apresentar o sofrimento e o amor como coisas gigantes que só acontecem aqui ou ali na vida, percebe-se que elas estão plenamente entrelaçadas no tecido do quotidiano” (EW). O álbum espraia-se para dar nota das glórias e agruras de cada vínculo, como prometido no título.

Não faltam temas que se debrucem sobre o estado da nação, porque “anybody with a worried mind could never forgive the sight/ of wicked snakes inside a place you thought was dignified”. Mas estamos bem longe do tom denunciativo que Koenig associa à juventude, porque “o tu acusatório nem sempre resolve os problemas” e, no fim de contas, a serpente enrosca-se nesse “genocidal feeling/ that beats in every heart”. Para além de que, sem deixar de ser político e até ambientalista, Father of the Bride permanece a história do laço que prende Koenig à mulher com quem partilha a vida. A consciência da fragilidade que habita nos próprios ossos fá-lo abrir a comédia romântica com a única promessa possível a um homem, destruindo o mito cor-de-rosa ainda antes de a história arrancar: “I can’t carry you forever, but I can hold you now”. Daí por diante, não haverá momento algum da narrativa em que uma proclamação de felicidade não venha assombrada pela certeza ou o temor do mal iminente: “We took a vow in summertime/ now we find ourselves in late December” ou “Baby, I know pain is as natural as the rain/ I just thought it didn’t rain in California”.»

VAMPIRE WEEKEND | FATHER OF THE BRIDE

Agora a banda de Brooklyn desalinhada. A descrição exclui os The National, cujo I Am Easy to Find, encontrou fãs entre alguns de nós mas não todos ou não totalmente. A banda a estilhaçar em pedaços o nosso coração e a conquistar um lugar de honra na nossa Playlist de Maio (quase ficou em primeiro, mas a vida é feita de surpresas) foram os Charly Bliss, liderados por aquela voz de boneca de Beverly Hills que é Eva Hendricks. O power pop da vocalista e guitarrista Eva Hendricks, do guitarrista Spencer Fox, do baixista Dan Shure e do baterista Sam Hendricks levou a anos a amadurecer, desde os tempos de liceu em Westport, Connecticut, quando Hendricks e Fox começaram a colaborar na composição de canções folk. Dan Shure e o irmão de Hendricks entraram para a banda quando Eva quis gravar um primeiro EP e lançá-lo no Bandcamp, à laia de projecto musical para apresentar como portefólio na sua entrada na New York University Tisch School of Arts.

Desde então, os Charly Bliss chamaram a atenção da crítica internacional com o seu álbum de estreia, Guppy (2017) e consolidaram agora, com Young Enough, a fama como uma banda sólida, talentosa e carismática, que veio para ficar. O novo registo refina a sua versão de power pop, limando algumas das arestas mais punk e encontrando força em formas mais concisas e económicas de canção, nos motivos melódicos explosivamente cantáveis e na rapidez e precisão do diálogo entre os instrumentos. Estava lá tudo desde o princípio mas só neste registo emerge nitidamente, sem digressões, acréscimos ou excessos inúteis que escondem mais do que potenciam.

É claro que, de boneca, Hendricks só tem a voz. A sua poesia, vaga mas cortante, está cheia de tiradas memoráveis, algumas das quais são refrães hínicos, de cantar a plenos pulmões, como acontece no tema de abertura do álbum:  “It’s gonna break my heart to see it blown to bits”. Está também cheia de analogias tão longe dos estereótipos da pop que só podem ter sido tiradas da dor e alegria reais, como as que compõem dois dos versos de “Hurt me”, um dos pontos altos de Young Enough: “Eyes like a funeral, mouth like a bruise/ Veins like a hallway, voice like a wound”. Porque a mágoa de uma relação que correu e acabou mal (“He can’t save me/ I’m alive but I’m dead inside”) atravessa todo o álbum, com Hendricks a cuspir ressentimento, pesar e desejo, tudo ao mesmo tempo na mesma canção, estrofe ou mesmo verso.

CHARLY BLISS | YOUNG ENOUGH

Playlist de Maio | O álbum do mês

O nosso álbum do mês não é (pelo menos num certo sentido) fácil de ouvir, nem tão pouco consensual (não sei quanto deste “nosso” não mascarará, na realidade, um “meu”). Da cantautora australiana Katie Dey poucas imagens se conhecem e em nenhuma delas se lhe abre largo o sorriso. Escusam de procurar entrevistas ou performances ao vivo no Youtube para descobrir qual possa ser realmente o timbre da sua voz, ou ao que soa ela para lá do seu esconderijo na produção caseira, cheia de reverberação. Num soprano estridente, no limite do registo (porque, como ela própria diz, “My soul sings in higher/ Octaves than my larynx will allow”), Katie Dey canta enterrando o seu grito agudo, sumido e soluçado, numa textura nebulosa de sonoridades intermitentes e eventos musicais isolados. Instala-se uma luta entre a voz esganiçada, de pacificada dor, e as ondas e crescendos melódicos do instrumental nervoso, feito de teclados, sintetizadores e amostras sonoras. Numa rara entrevista ao The Fader, Katie Dey reconheceu o quanto, no passado, deteriorava a voz para não se ouvir a si mesma.

Solipsisters continua o bedroom pop de tonalidades religiosas, melodias plangentes e torção de frequências por que Katie Dey vem sendo conhecida. Mas este álbum, que marca a estreia da cantautora na sua nova discográfica Run For Covers, soa mais coeso e grandiloquente que os seus antecessores, Flood Network (Joy Void Recordings, 2016) e asdfasdf (Orchid Tapes, 2015). Não poucas vezes a sua musicalidade de sinapses e sussurros assume a segurança eletrónica dos Postal Service, a pompa dos Sigur Ròs ou a exaltação de M83 (da era de Before the Dawn Heals Us ou Hurry Up, We’re Dreaming). As canções emergem distintas entre si, com uma estrutura mais robusta e uma lógica interna mais evidente, e a suspeita, desde “Unkillable”, de que havia em Katie Dey um talento pop a explorar, para lá do seu experimentalismo, torna-se aqui certeza. Até a voz emerge mais clara e assertiva, menos reduzida a detrito sonoro, mesmo se permanecem os temas de desconforto e desejo de um infinito fisicamente palpável.

Vislumbra-se em Solipsisters um horizonte de positividade novo, e não só ao nível do instrumental. É verdade que em muitas canções, como “Solipsisting” ou “Stuck”, derivando de uma concepção leibniziana da identidade, domina uma visão interrogante, se não mesmo negativa, do corpo, visto como um obstáculo à expansão infinita da alma, ao encontro perfeito das mentes e ao conhecimento de Deus. Convive com a solidão do eu a fragmentação do corpo em partes que Katie põe a dialogar entre si. Mas tudo isto são, em grande parte, vestígios de um projecto inicial (algumas das canções tinham sido já esboçadas em 2011), que a australiana acabou por abandonar. De facto, em “Dissolving”, confessa que “I know I’m tired too of this self-pity shit/ It’s feeling like a trap I can’t escape” e luta contra o desespero: “I don’t wanna die, I just feel like/ I’m drowning, dissolving to nothing”. E, se o tema do álbum parece ser o solipsismo, a intenção que o conduz é o desejo de comunicar, tanto que, pela primeira vez, Katie Dey partilhou as letras das canções: “à medida que cresço, fico mais desesperada por comunicar eficazmente com as pessoas.” A rapariga desalojada do próprio corpo agarra-o, ou agarra-se a ele, e põe-se a caminho, cantando sem pejo, no final do álbum, que “as we grow longer, or slowly unfold ourselves” o que vem é “a wish/ of moving closer to a place for us to live”.

KATIE DEY | SOLIPSISTERS

PLAYLIST DE MAIO | DESTAQUES DO MÊS

  • Big Thief, U.F.O.F. (4AD, 3 de Maio)
  • Vampire Weekend, Father of the Bride (Sony, 3 de Maio)
  • Truth Club, Not An Exit (Tiny Engines, 3 de Maio)
  • Haelos, Any Random Kindness (Infectious, 10 de Maio)
  • Charly Bliss, Young Enough (Barsuk, 10 de Maio)
  • Alex Lahey, The Best of Luck Club (Dead Oceans, 17 de Maio)
  • The National, I Am Not Easy to Find (4AD, 17 de Maio)
  • Tyler, The Creator, IGOR (Columbia, 17 de Maio)
  • Operators, Radiant Dawn (Last Gang Records, 17 de Maio)
  • Cate Le Bon, Reward (Mexican Summer, 24 de Maio)
  • Flying Lotus, Flamagra (Warp, 24 de Maio)
  • Denzel Curry, ZUU (Loma Vista, 31  de Maio)
  • Katie Dey, Solipsisters (Run For Cover, 31 de Maio)

PLAYLIST DE MAIO | SPOTIFY

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *