Com o cinema japonês em destaque na MONSTRA deste ano, “Akira” de Katsuhiro Ôtomo foi uma das obras mais aclamadas em exibição. O clássico de 1988 é um marco na História do anime.
No panorama da animação nipónica, há poucos filmes mais influentes que “Akira,” feito suprassumo do cineasta Kastsuhiro Ôtomo. Desde o mangaka Masashi Kishimoto até ao cineasta norte-americano Jordan Peele, até mesmo aos Duffer Brothers de “Stranger Things”, muitos são os artistas que têm apontado para “Akira” como fonte de inspiração, solidificando o seu estatuto enquanto um monumento mais do que um mero filme. Parte deste legado devém do facto de que foi este um dos primeiros títulos capazes de transcender a popularidade com o público japonês, alcançando um nível de sucesso internacional que veio abrir portas e expandir horizontes.
Também veio sublinhar uma verdade absoluta que o cinema ocidental tende a ignorar – a animação não há que ser exclusivamente feita para entretenimento infantil. Trata-se de um meio, não um género, capaz de abordar várias temáticas, de almejar complexidades profundas e dedicar-se a um público adulto mais do que à miudagem. Em suma, é impossível imaginar o estado atual do anime enquanto sensação mundial sem considerar o impacto de “Akira.” Não que o valor da obra dependa somente desses fatores. Por outras palavras, contextos históricos são importantes, mas a principal razão para a longevidade deste anime é a sua qualidade, pura e dura.
Tudo começa com um gesto apocalíptico, uma visão de Tóquio consumida por uma enorme luz. A abóbada de brancura cega, ecoando com o trauma da bomba atómica à medida que devora a capital japonesa como uma besta cósmica. Depois desse plano vem o clarão e a música de Shoji Yamashiro, um som que traz aquilo que, em 1988, era o futuro. Acontece que aquele prólogo documentava a destruição de Tóquio nos anos 80, quando uma explosão misteriosa deu aso a toda uma guerra nuclear que veio assolar o globo. Qual fénix renascendo das cinzas, Neo Tóquio emergiu dos escombros. A ação principal passa-se em 2019, quando a metrópole se prepara para acolher os Jogos Olímpicos.
Construção leva-se a cabo em vários pontos do plano urbano, enquanto a câmara divina nos detalha uma nova ordem onde hierarquias sociais e caos absoluto definem a vida humana. Protestos contra um governo autocrático irrompem pelas ruas, ao mesmo tempo que o terrorismo dá as mãos a fanáticos religiosos cuja fé deriva daquela explosão incógnita. A juventude está perdida, assombrando as estradas em jeito de gangues que travam guerra aberta, recordando a histeria anti-adolescente que se faz sentir nos media desde os anos 50. Neste panorama, deparamo-nos com um desses grupos de delinquentes, os Capsules, liderados por Shotaro Kaneda.
Vestido de vermelho, a condizer com a sua mota, ele é como James Dean renascido num contexto cyber punk. Não que “Akira” seja “Fúria de Viver” com elementos de ficção-científica. De facto, apesar da centralidade de Kaneda, ele é o nosso ponto de entrada na história, mas não o seu verdadeiro protagonista. Esse papel cabe a Tetsuo, seu melhor amigo desde a infância, e um rapaz com um forte complexo de inferioridade. Certa noite, durante uma perseguição na transversal, uma misteriosa figura aparece no meio da estrada e colide com o jovem, provocando o impacto com um campo de forças e o despertar de algo estranho em Tetsuo.
A partir desse momento, a narrativa desenrola-se através de uma série de linhas paralelas, ocasionalmente cruzadas até à convergência total durante o clímax. É difícil explicar o enredo de “Akira,” tão bizantina é a sua estrutura, mas fica a ideia de que Otomo faz como Victor Hugo, usando as várias personagens para pintar um retrato coletivo da sociedade em rutura. Também se sente o conceito basilar de que o poder corrompe e que, nas mãos erradas, mesmo o maior dos milagres se pode converter em força destrutiva. À procura de um messias, podemos descobrir o fim do mundo.
No manga de “Akira,” há mais exploração destes temas, até a sua ocasional contradição, mas também lá se regista um nível de complicação estrutural que o guião do filme muito faz para resolver. Não que, em plena forma de cinema, a história seja particularmente fácil de discernir. Estamos sempre com a impressão que caímos na ação in media res, sem explicações a mais de modo a que é difícil evitar confusão. Contudo, esse efeito torna-se em qualidade, especialmente à medida que nos deparamos com uma realidade onde noções além da compreensão humana expandem a carne e dilaceram a mente.
Há tanto que se pode explorar no que se refere a “Akira,” englobando questões de design de personagem até psicologia estilhaçada. Poderíamos aprofundar a contradição de figuras entre a caricatura e o naturalismo, tão precisamente concebidas que o mero levantar do cabelo define distintos níveis de moralidade. Quiçá se falaria de como a cenografia maximalista pega no futuro maltratado de “Blade Runner” e o reconfigura para uma sensibilidade decididamente japonesa. Poderíamos falar da dramaturgia da cor, do modo como a ameaça abstrata se manifesta em tumultos concretos, como fins são inícios e a aniquilação pode ser o ventre de onde nasce um novo cosmos.
Dito isso, para concluir esta análise, abandonamos o intelectualismo desses discursos para nos focarmos em algo visual, até técnico. Uma das razões pela qual “Akira” tanto perdura na imaginação coletiva dos amantes de anime é justamente a sua animação. Há uma enorme fluidez que desafia as ideias comuns do cartoon, em parte porque os cineastas empregam o dobro dos desenhos usualmente projetados por segundo. Isto não se aplica a todos os setores do filme, sendo principalmente marcado em passagens de ação ou nos ajustes espaciais quando a câmara se move. O resultado é uma imagem que nos envolve, uma experiência imersiva capaz de fazer até do espetador mais cético um fã de anime. Bendito seja “Akira,” obra-prima do cinema animado, da ficção-científica, do body horror e tanto mais.
Genre: Animação, Drama, Ação, Ficção-Científica, 1988, 124 min
Cláudio Alves - 95
95
CONCLUSÃO:
Poucos são os trabalhos de anime mais influentes que “Akira,” estando o seu lugar nos livros de história há muito consagrado. No entanto, é sempre um privilégio revisitar o triunfo de ficção-científica em jeito apocalíptico, especialmente num contexto como a MONSTRA. Para celebrar o cinema japonês, nada melhor que apreciar este sonho a resvalar num pesadelo.
O MELHOR: A animação híper-fluida, com detalhe impressionante e uma estética cyber punk com um pé no maximalismo e outro no terror.
O PIOR: Apesar da imersividade audiovisual, o guião de “Akira” pode ser um tanto ou quanto alienante na sua recusa da explicação imediata ou do esclarecimento pronto.
Licenciado em Teatro, ramo Design de Cena, pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Ocasional figurinista, apaixonado por escrita e desenho. Um cinéfilo devoto que participou no Young Critics Workshop do Festival de Cinema de Gante em 2016. Já teve textos publicados também no blogue da FILMIN e na publicação belga Photogénie.