"Alice" | © Condor Films

MONSTRA ’23 | Alice, em análise

Na sua parceria com a Cinemateca Portuguesa, a MONSTRA de 2023 exibiu vários filmes de valor histórico na sua programação animada. Um dos títulos mais fascinantes foi “Neco z Alenky,” também conhecido como “Alice.” Trata-se de uma adaptação da “Alice no País das Maravilhas” assinada pelo checo Jan Svankmajer.

Desde os primórdios do cinema narrativo que artistas se têm sentido inspirados pela obra seminal de Lewis Carroll. Falamos, pois claro dos dois livros sobre as aventuras de uma moça inglesa perdida num mundo fantástico e profundamente irracional – “Alice no País das Maravilhas” e “Alice Através do Espelho.” Já no cinema mudo havia quem tentasse capturar o sonho mirabolante em celuloide, e antes do clássico de 1951 já havia Walt Disney tentado a façanha, misturando uma atriz de carne e osso com desenhos animados. Entre o mudo e a extravagância de Tim Burton, há um caleidoscópio de possibilidades cinematográficas.

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No meio dessa vastidão, encontramos a primeira longa-metragem de Jan Svankmajer, um animador checo que, desde os anos 60, andava a testar os limites do grotesco e da expressividade em stop-motion. Suas curtas são milagres ímpios, onde a materialidade das criações salta à vista, despertando respostas viscerais no âmago do espetador. Metem medo essas visões, muitas vezes hediondas na vertigem do terror, apelando à escuridão que se esconde na imaginação de todos, miúdos e graúdos. Em plasticina e barro, o seu cinema transcende o mundo natural para chegar ao surrealismo do grande ecrã, a tela feita janela para o inconsciente.

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© Condor Films

Essa mesma filosofia atinge a sua plena forma em “Alice,” longa inaugural do cineasta já muito após ter alcançado a consagração internacional. Tal como Walt Disney, Svankmajer começa o processo de adaptação pela mistura do live-action e da animação, ancorando a história nas experiências de uma rapariga aterrada. Contudo, na mesma medida que se aproxima dos seus antecessores, também o artista traz novas dimensões ao conto. Atente-se a palavra “aterrada.” Aí está a grande diferença entre a abordagem do checo e dos restantes cineastas que confrontaram o conto de Carroll – medo.

Ao invés de desenrolar a terra imaginária numa procissão de maravilhas, “Alice” encara o repúdio da lógica como um repúdio da ordem cósmica. Não se trata de um gesto libertador, cair nessa toca de coelho. De facto, é algo mais perto da queda na ravina do pesadelo, afundando-se naquelas sombras onde os temores mais miúdos da mente se tornam em monstros imparáveis. Também não há aqui preceitos de uma Inglaterra Vitoriana, sendo o cenário mais contemporâneo e mais banal. Tudo o que é real e irreal nesta história encontra-se enclausurado nos limites do lar, onde uma criança negligenciada passa o tempo sozinha.

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No abandono, os traumas da crueldade adulta dão aso às personagens horrendas, desde amigos a vilões. O Coelho Branco é quiçá a imagem mais conhecida desta “Alice,” sendo uma dessas criações que vão além do mau gosto para se tornar em algo verdadeiramente perturbador. Não é ele nem barro nem plasticina, preferindo-se o meio do cadáver preservado pela taxidermia, pelos orgânicos em conjugação com dentes partidos e olhos de vidro. Os movimentos são os de uma marioneta empalhada, possuída por algum demónio, enquanto os sons com que comunica pressagiam uma natureza entomológica, talvez mecânica.

Mais do que um mensageiro do sonho, este coelho é emissário da morte e o primeiro de muitos horrores a visitar a menina deixada sozinha em casa. O cenário singelo vai revelando camadas de degredo e corrosão, cada pedaço de lixo tornando-se noutra criatura pronta a encenar o conto de Lewis Carroll em moda de danse macabre. O mundano é o berço do assombro, com a câmara sempre a posicionar-nos na perspetiva infantil de modo a sentirmos como a fantasia é extensão dos sentimentos despertados pelo vazio doméstico. Repetindo a estratégia do coelho noutras figuras, Svankmajer usa esqueletos e papel cortado, rasgado, pregos ferrugentos e organismos preservados em líquido âmbar.

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© Condor Films

Toda esta podridão põe-nos a ideia da morte na cabeça de tal modo que todo o filme parece ser um grito silencioso por parte de uma menina prestes a falecer sem que ninguém dê pela sua falta. Nesse sentido, “Alice” torna-se numa insuspeita lição em empatia radical, usando a mais mórbida animação que a Europa de Leste tinha a oferecer nos anos 80, para retorcer um conto clássico à volta da psicologia infantil. O simbolismo é básico e imediato, quase primordial, dialogando com o espetador a um nível onde mais do que a troca de ideias, sentimos a troca de impressões biológicas. Enoja-nos o filme e fá-lo de propósito, aliando-nos à subjetividade menina. Apesar de ser cinema para adultos, “Alice” é expressão monstruosa da experiência de se ser pequeno e estar a morrer de medo face a algo incógnito, desconhecido, fundamentalmente errado.

Alice, em análise
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Movie title: Neco z Alenky

Date published: 28 de March de 2023

Director(s): Jan Svankmajer

Actor(s): Kristýna Kohoutová

Genre: Animação, Aventura, Fantasia, Terror, 1988, 86 min

  • Cláudio Alves - 100
100

CONCLUSÃO:

Um dos grandes mestres da animação stop-motion, Jan Svankmajer constrói em “Alice” uma daquelas criações que resumem a obra e a vida do artista. Uma adaptação literária por vias experimentais, narrativa desfeita em prol daquilo que se sente no umbigo, este é um pesadelo primordial cristalizado em celuloide. Inesquecível, trata-se de um dos grandes filmes surrealistas na História do Cinema.

O MELHOR: A animação taxidérmica, os sons que viverão para sempre nos nossos pesadelos, a acumulação de símbolos rebuscados e putrefações em movimento.

O PIOR: A falta de narrativa definida, a qualidade experimental do exercício, o absoluto horror das imagens – tudo isso são qualidades, mas imaginamos muitos espetadores capazes de reagir a esses elementos de forma negativa.

CA

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