"The Night" | © MOTELX

MOTELX ’21 | The Night, em análise

Uma rara coprodução entre a América e o Irão, “The Night” é uma proposta de terror no panorama independente. Realizada por Kourosh Ahari e com Shahab Hosseini no papel principal, a obra figurou na secção Serviço de Quarto do MOTELX 2021.

Começar mal e acabar bem tende a suscitar opiniões positivas, deixando o espetador num êxtase final, um ponto conclusivo que coincide com o ponto alto da fita. Filmes que que vacilam no meio, são ainda mais desculpados, a mediocridade perdendo-se por entre o fulgor de um bom início e o remate do final fantástico. Contudo, terminar com nota má, depois de dois atos satisfatórios, é morte certa para a proposta cinematográfica. Um fim mais depressa estraga o projeto que uma introdução defeituosa ou interlúdio desiludo. É injusto, mas assim os nossos cérebros trabalham.

“The Night” bem exemplifica a perfídia dessa lição e sua validade incontornável. Em termos francos e frontais, o terceiro ato é uma catástrofe de justificações narrativas que contaminam tudo o que veio antes num gesto de toxicidade retroativa. Quando o texto de Ahari e Milad Jarmooz tenta dar justificação humana para o terror, a sofisticação enigmática, a alienação amoral da fita, some para dar lugar à crueldade reacionária. Afinal, tudo o que acontece neste pesadelo tem razão de ser e essa razão diz mais sobre os cineastas do que sobre as personagens.

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Além do mais, as ideias virulentas da reviravolta textual perduram até ao fim dessa passagem narrativa, terminando num gesto que transborda misoginia. Depois disso, mesmo quando Ahari usa a abstração formalista para recuperar as inquietações perdidas no início da fita, não há maneira de “The Night” recuperar fôlego. O mal está feito e só mesmo a prestação do ator principal consegue sustentar o edifício fílmico. Se o projeto não cai por terra nesta secção final, muito deve aos esforços heroicos de Shahab Hosseini e sua propensão para encontrar verdades granulares no mais lúrido dos sensacionalismos.

Um dos maiores atores do cinema iraniano contemporâneo, Hosseini tem sido cara regular do circuito dos festivais. Suas colaborações com Asghar Farhadi, “Uma Separação” e “O Vendedor”, já valeram muita aclamação e até o prémio para Melhor Ator em Cannes. Testemunhar a astúcia deste intérprete num género tão distante desses realismos sociais é excitante. Vê-lo numa desventura pelo terror, em particular, é um sonho concretizado. Sua cara expressiva é perfeita na modulagem do tom, insistindo em revelar negruras interiores muito antes dos sustos começarem em pleno.

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Na sua continência social, falando com amigos num serão doméstico, sentimos a ameaça de agressão. Não há violência, mas Hosseini sabe como sugerir a sua possibilidade com pouco mais que um olhar semicerrado ou um pescoço tenso. No papel de Babak Naderi, um imigrante iraniano nos EUA, o ator delineia as muitas camadas de culpa, raiva, ressentimento matrimonial, que se escondem por detrás de uma fachada plácida. Sua esposa, Neda, é interpretada por Niousha Noor e também tem os seus segredos.

Sentimos, desde início, que o casamento dos dois está longe de ser ideal. Fricções perigosas vivem debaixo da superfície. Infelizmente para o casal, depois de saírem da casa amiga, seu regresso a casa é conturbado. Na companhia da filha bebé, eles são forçados a procurar guarida num hotel insuspeito. Sem saberem, eles entraram voluntariamente numa prisão, numa cela tenebrosa que só os conduzirá ao desespero total. Tudo é filmado com um anonimato inquietante, planos distantes e impessoais, um olhar divino que dá a suavidade do plástico frio a toda a paisagem.

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Mirando estradas anónimas na penumbra da noite, vendo até o hotel maligno, pensamos que tanto podíamos estar no Irão como nos EUA. Para estes expatriados perdidos, o passado nunca está longe. Tais ambiguidades poderiam esboçar um terror centrado no desconforto do imigrante, na violência Americana contra pessoas muçulmanas. No entanto, “The Night” foge à dimensão política para se enterrar num miasma muito pessoal, abandonando a abstração em prol da assombração bem explicada e, por isso, menos aterradora. Os demónios que atormentam as personagens são fantasmas específicos, espectros deixados para trás na travessia de continente de continente, de vida para vida.

O desconhecido indefinido enerva sempre mais que um conceito fechado. De facto, é quando explora a possibilidade estética desse mesmo desconhecido que o filme melhor funciona. Antes de desperdiçar tudo naquele terceiro ato desastroso, há um ponto médio bem interessante. Usando as limitações de recursos como benesse ao invés de maldição, Ahari e sua equipa extraem atmosferas densas em inquietação daqueles corredores sinuosos e quartos despidos. A escuridão esconde cenários baratos, mas também esconde definição, dando a essas passagens uma irrealidade fugaz, a plasticidade e uma pluma de fumo que se esvanece no ar ou nos entra pelo nariz adentro, sufocando com o beijo carbónico.

The Night, em análise

Movie title: The Night

Date published: 14 de September de 2021

Director(s): Kourosh Ahari

Actor(s): Shahab Hosseini, Niousha Noor, Leah Oganyan, George Maguire, Michael Graham, Armin Amiri, Elester Latham, Kathreen Khavari

Genre: Terror, Thriller, Mistério, 2020, 105 min

  • Cláudio Alves - 45
45

CONCLUSÃO:

“The Night” desperdiça uma premissa intrigante e bom elenco num texto que precisava de mais umas revisões. O realizador bem tenta encontrar poesia nos labirintos de trevas e aparições castigadoras, mas sua visão é traída pelo argumento que ajudou a escrever. Entre os EUA e o Irão, “The Night” parece ter-se afundado no Atlântico, afogando-se num oceano de ambições perdidas e sonhos vencidos, esses espectros das profundezas.

O MELHOR: Hosseini, sua cara amotinada, o brilho de terror que reluz no canto do olho. A última imagem de todas tem poder pela desconexão apática que, de repente, se abate sobre o ator. Naquele instante, sentimos aquele medo tão grande que, ao invés de gerar um grito, suscita o silêncio paralisado.

O PIOR: A misoginia punitiva inserida na reviravolta, na explicação dos demónios que caminham os corredores escuros do hotel.

CA

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