Em “A Médium,” o realizador Banjong Pisanthanakun reconfigura o filme de possessão demónica à imagem do folclore tailandês. A obra teve a sua estreia mundial na Coreia do Sul, no Festival de Bucheon onde ganhou a honra mais alta do festival, e veio a representar a Tailândia na corrida ao Óscar para Melhor Filme Internacional. De chegada aos cinemas portugueses, “A Médium” teve antestreia no 16º MOTELX, onde integrou a secção Serviço de Quarto.
Há quase duas décadas que o documentário falseado é uma constante do cinema de terror. Podemos encontrar esse tipo de projeto na esfera mainstream dos grandes franchises – pensem em “Paranormal Activity” e “Cloverfield” – e também em paradigmas mais obscuros. “A Médium” é bom exemplo disso, representando uma versão internacional do modelo estilístico agora adaptado à indústria cinematográfica da Tailândia. Não se trata de uma produção especialmente distante do mainstream, mas é sempre bom celebrar o cinema popular feito fora de Hollywood. Mesmo que, como neste caso, sua natureza polida acabe por ser sinal de desgraça.
Antes de considerarmos problemas estéticos, é melhor estabelecer os parâmetros da história. Como o título indica, “A Médium” desenrola-se em torno de uma mulher espírita, expandido seu foco narrativo para sua família à medida que a tragédia se aprofunda. Ela é Nim e, na sua comunidade, o título de xamã é tanto uma bênção como uma maldição sanguínea. Trata-se do presente do poder de mãos dadas a uma sentença à possessão divina, à permanente existência enquanto um recetáculo para Ba Yan, a divindade local da região Isan. É para lá que uma equipa de filmagens viaja, em busca da história de Nim e seu testemunho.
Inicialmente, o filme assume a forma de um documentário de observação passiva com a ocasional entrevista direta para a câmara. Uma constante questão é a necessidade de se capturar prova visual do impossível, essas forças do outro mundo que se escondem ao olho nu. Falam-se de questões religiosas, da fé, constrói-se um edifício temático que sustentaria uma proposta intelectualizada do terror folclórico. Pouco a pouco, contudo, os pretextos da não-ficção ficcionada vão-se perdendo, revelando o lado ‘mockumentary’ de “A Médium” como uma afetação superficial.
De facto, chegaríamos ao ponto de caracterizar Nim como uma protagonista aparente que de proactivo faz pouco. O verdadeiro centro da trama é Mink, sua sobrinha e aparente escolha de Ba Yan para sua nova xamã. “A Médium” é um filme comprido, excedendo as duas horas, e grande parte dessa duração dedica-se ao catalogar de um corpo e mente em processo de definhar, a jovem mulher perdendo autonomia até que se reduz a uma marioneta de carne. São forças do além que a controlam, mas levanta-se uma dúvida perante a violenta transformação – será a benigna Ba Yan que inflama Mink de poderes ocultos, ou será um agente mais maligno?
O custo da fé torna-se na ideia base para os mais horrendos episódios do filme, fraturando a comunidade fiel à deusa local. São as armas da dúvida e do medo que desferem o golpe final, matando a crença dócil em nome do pânico. A alma de Mink está em jogo e muito mais também. É triste por isso, que todo o aparato seja contradito pelo estilo escolhido do realizador. As afetações do documentário sublinham a falsidade teatral dos eventos, ideia reforçada pela encenação cuidada de cada momento. Num tipo de cinema onde a representação do espontâneo está no cerne de tudo, “A Médium” sabe a mentira mal contada e pretensiosismo fútil.
Custa dizer tal coisa, mas a fotografia de Naruphol Chokanapitak é demasiado boa e polida, tudo pintado com luz suave quer seja o interior de uma cabana em polvorosa ou um altar perdido na floresta. O espetáculo do Grand Guignol necessita de ser feito com amor ao grotesco, um esgar contra curadorias a mais, uma aceitação do rudimentar e do cru. Aqui, até a visão mais sangrenta de um corpo desfeito parece pintura de luz baça e refratada, uma sintetização em matizes digitais com definição afiada. O terror do ‘found footage’ assim se torna numa experiência fracassada que drena poder ao aparato de Mink e seu monstruoso fado. No final, é a tragédia que vinga enquanto a faceta assustadora do filme perde fôlego. “A Médium” resulta melhor como uma meditação sobre o peso de crimes passados no presente, um retrato de traumas familiares e outras tristezas que tais. Quando tenta retorcer essa vertente num espetáculo de assombrações, o edifício fílmico colapsa sobre si mesmo.
“A Médium” é um filme cheio de potencial que implode perante o desafio do mockumentary aliado ao drama de família, à história de possessão e inconsequente reflexão cultural. Muito louvamos o cineasta que se deixa levar pela ambição, mas o realizador Banjong Pisanthanakun acabou por ser vítima da sua mesma criatividade. Em suma, trata-se de um filme com muitas ideias e nada a colá-las na forma de um objeto final, coerente, consciente.
O MELHOR: A tragédia de Mink enquanto manifestação dos pecados familiares, passados de geração em geração como uma enfermidade consanguínea.
O PIOR: Todas as afetações estéticas do documentário falseado, gestos manientas e inconsistentes que não levam a lado algum.