"Good Madam" | © MOTELX

MOTELX’ 22 | Good Madam, em análise

Assombrado pelos fantasmas do apartheid e seus traumas geracionais, “Good Madam,” também conhecida como “Mlungu Wam,” é uma intrigante proposta de terror sul-africano. O filme de Jenna Cato Bass teve estreia no Festival de Toronto do ano passado, onde foi comprado pela Shudder antes de continuar seu percurso pelo circuito festivaleiro. Pela mão do MOTELx, assim chega à obra a audiências portuguesas, integrando a secção Serviço de Quarto neste 16º ano do festival.

O cinema de terror pode articular realidades insidiosas melhor que outros géneros, usando a distorção do real como lupa. Assim acontece em “Good Madam,” um exercício narrativo que apela ao sobrenatural e histórias de possessão, usando esses preceitos para explorar as reverberações do racismo na África do Sul. O apartheid pode já ter terminado, mas esse flagelo deixou as suas marcas na sociedade, cicatrizes que mantêm o passado vivo no presente. No caso das gerações mais velhas, os fantasmas do antes são a ordem do agora, e é difícil redefinir a vida além do hábito, da tradição destrutiva que anda de mãos dadas com o crime do colonialismo.

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Se o terror aqui se manifesta em preceitos demónicos, fá-lo em reflexão do veneno banal de todos os dias. Afinal, quantas famílias não haverá na África do Sul com histórias semelhantes às de “Good Madam.” Nesta quinta longa-metragem da realizadora Jenna Cato Bass, Tsidi é uma mãe solteira que se vê desamparada e sem para onde se virar quando a avó morre, deixando-a efetivamente sem-abrigo. Na aflição, ela pede ajuda a Mavis, sua progenitora, e vai viver com ela na Cidade do Cabo, levando consigo a filha pequena, Winnie. A casa é enorme e luxuosa, mas não pertence realmente a Mavis, não obstante ela lá permanecer há décadas.

A dona é a Madam do título, senhora branca chamada Diane cuja família é rica desde tempos imemoriais e tem tido sempre servos pretos. Nos jardins da propriedade, existem campas desses criados e amas, cozinheiros e jardineiros, enterrados no local de trabalho para a eternidade. A servitude continua além da morte, algo que se prova literal consoante os mistérios do pesadelo são revelados. Dito isso, a presença opressora dessa senhora faz-se sentir sem que a sua forma física apareça em cena. Hoje em dia, Madam está confinada ao quarto. Velha e doente, fragilizada pelos flagelos do tempo e abandonada pelos filhos que emigraram para a Austrália, ela depende de Mavis para tudo.

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Mas, como é óbvio, tanto mais depende a criada da sua senhora, entidade que controla toda a subsistência económica de Mavis. Ela é uma convidada subalterna na casa em que vive e nem ousa beber chá com as chávenas de Diane. Assim se passam os dias de Tsidi, cuja vida começou entre o domicílio pobre nos arredores da cidade e essas paredes de privilégio racial onde a jovem de pele preta nunca se sentiu confortável. O regresso não atenua a ansiedade, separando-a espiritualmente de uma mãe que aceita as condições servis que a casa impõe, e um meio-irmão que, tendo sido adotado e rebatizado pela Madam, se sente mais ligado à família branca que ao sangue preto.

Fraturas de classe separam os irmãos, mas é a diferença cultural e na identificação racial que mais se faz sentir. A inveja existe, sem dúvida, mas também o medo, pois o homem renomeado Stuart parece mais afiliado à força sinistra da Madam que à sua mãe biológica. O tempo passa e as regras da vida de criado começam a asfixiar a nossa protagonista, mulher moderna agrilhoada a estas noções de submissão servil com traços de escravatura. Na banda-sonora, sons de trabalho doméstico martelam os ouvidos do espetador, enquanto o cenário se enche de detalhes onde o corpo do nativo africano é convertido em comodidade para as burguesias brancas.

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Chegados os últimos atos da fita, a aflição de Tsidi passa do inefável a algo inegável, seu corpo parecendo cair sob o controlo de outrem. Ela deixa de ser dona de si mesma, forçada por poder fantasmagórico a assumir o mesmo papel que os antepassados, que a mãe. As crueldades do colonialismo europeu são assim tornadas em algo que merece exorcismo violento, um gesto maligno e capaz de quebrar o espírito. Nas mãos de atores menos sublimes, “Good Madam” poderia desfazer-se no momento quando simbolismos abstratos se tornam literais, mas Chumisa Cosa e Nosipo Mtebe ancoram a loucura com admirável esforço. Nas suas mãos, o filme torna-se num tratado contra opressão, um grito contra o esquecimento, contra a passividade de quem julga a luta por terminada.

Good Madam, em análise

Movie title: Mlungu Wam

Date published: 9 de September de 2022

Director(s): Jenna Cato Bass

Actor(s): Chumisa Cosa, Nosipho Mtebe, Kamvalethu Jonas Raziya, Sanda Shandu, Khanyiso Kenqa, Sizwe Ginger Lubengu, Jennifer Boraine

Genre: Terror, 2021, 92 min

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

Nem tudo resulta em “Good Madam,” especialmente a fotografia digital, mas Bass e companhia propõem um necessário ensaio sobre o modo como os capítulos mais tristes do passado reverberam pela contemporaneidade e devem ser lutados até ao fim. Algumas das conclusões são óbvias e pecam pela falta de subtileza, mas todo o argumento prima pela sua urgência.

O MELHOR: A sonoplastia incansável, tornando os ruídos de escovas e esfregonas numa manifestação do inferno na Terra, o corpo levado aos limites pelo trabalho repetido por séculos e através de gerações.

O PIOR: A fotografia, assinada pela própria Jenna Cato Bass, é um elemento muito frágil de “Good Madam.” Há pouca variação visual e excesso de iluminação, pele escura tornada amarelada por desequilíbrios tonais.

CA

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