ArteKino ’18 | Mug, em análise
“Mug”, um filme polaco premiado na Berlinale deste ano, retrata os dilemas de um homem desfigurado numa comunidade conservadora unida pelo fervor do catolicismo. Este é um dos dez projetos europeus disponibilizados gratuitamente pela plataforma online ArteKino.
Por vezes, a melhor maneira de mostrar o nosso amor por algo é a mais violenta das críticas. Que prova há de maior afeto que uma tortuosa insistência em ver o que amamos ser melhor do que é e chegar ao seu máximo potencial? “Mug”, também conhecido como “Twarz”, ganhou o Urso de Prata na última edição da Berlinale e tem vindo a causar muita controvérsia pela sua sátira selvagem em todos os países e festivais por onde passa. Apesar disso, não é só um objeto de provocação vácua, mas sim algo que pode sugerir um ódio ardente da sua realizadora para com a Polónia, mas também a prova de amor patriótico.
Malgorzata Szumowska, de facto, não tem tento nas suas críticas cáusticas. Sua feroz antipatia para com toda uma cultura de hipocrisia católica e mentalidades conservadoras é tão óbvia como o nojo que a cineasta sente pelo racismo e xenofobia virulenta da sua pátria. De forma igual, ela expõe uma sôfrega necessidade de ver o país ser mais que a besta monstruosa que se evidencia no seu cinema crítico. Este filme é um ato de amor em forma de ódio.
Durante a sua primeira meia-hora, até parece que “Mug” não tem mais ambições que ser um retrato observacional de uma Polónia caricaturada de modo a destacar seus piores atributos. Szumowska inspirou-se parcialmente na construção do Cristo Rei de Świebodzin para conceber a comunidade em que a sua bizarra narrativa se desenrola. Trata-se de uma pequena cidade cheia de devotos católicos tão crentes que o advento de um exorcismo não é algo completamente fora do normal.
Foi graças às doações do populus que a construção do gigantesco monumento em forma de Jesus Cristo se tornou uma possibilidade, mas, apesar disso, grande parte dos trabalhadores responsáveis pela obra são indivíduos Roma a quem a população local trata com escárnio. Jacek, o nosso putativo protagonista de serviço, também trabalha no projeto, pertencendo ao grupo dos preconceituosos hostis mais do que ao das vítimas de xenofobia e racismo. Aliás, por muito que ele passe os dias a queixar-se e a sonhar em fazer vida fora dos limites provincianos da comunidade, a sua presente existência é uma marcada pelo privilégio.
Jacek é um ícone de rebeldia socialmente aceite com seus cabelos compridos, tatuagens e gosto por heavy metal. Sua namorada também partilha algumas marcas de rebeldia performativa a esconder o conforto de quem gosta de se sentir especial no meio da ignorância anti cosmopolita da comunidade campestre. Os dois gostam de se pavonear por festas locais com exuberantes danças e gritar epítetos de descontentamento exagerado das colinas circundantes. Jacek é o herói local que todos querem ser ou possuir.
Contudo, tal valor pessoal é rapidamente obliterado quando, um dia, um acidente na construção do ícone cristão resulta na hospitalização de Jacek. Parece que o rebelde a quem alguns vizinhos chamavam “Jesus” vai precisar de um transplante facial, uma cirurgia inédita na Europa que o torna numa celebridade nacional. Não que a chama temporária da fama seja grande compensação para a máscara de carne desfigurada a que Jacek agora chama cara. Trata-se de uma imagem que ele não reconhece como representante da sua pessoa e uma perigosa mostra de feiura e diferença que a comunidade polaca, mesmo com todas as suas afetações de caridade católica, não consegue aceitar.
A desgraça deste filho pródigo e herói local dá uma necessária âncora narrativa a um filme que, apesar de três atos bem definidos, sofre de graves sintomas de amorfia estrutural. “Mug” é o tipo de projeto que está a rebentar de ideias, neste caso de críticas e cuspidelas odiosas contra a sociedade polaca, seus vícios, hipocrisias e mesquinhas crueldades. A Igreja Católica é o alvo favorito da realizadora, mas mesmo suas investidas contra uma das instituições mais poderosas do mundo são mais uma série de bofetadas dispersas que o corte preciso de um bisturi. A grande sorte da cineasta é que o ímpeto da sua crítica em muito compensa a falta de afinação da mesma.
Muito mais prodigiosa, mas não por isso menos saturada de ideias, é a construção formal de “Mug”. Aí, Szumowska tenta encontrar mecanismos audiovisuais que traduzam suas ideias temáticas de modo vistoso e inescapável. Por vezes, tais intenções manifestam-se na forma de um leitmotiv musical que, por entre sua violência sónica típica do heavy metal, nos sugere a misantropia desesperada e alguém que não consegue encontrar esperança no mundo. Noutros instâncias, a fotografia e seu uso de míopes jogos focais fazem muito para sugerir a ignorância de uma comunidade que prefere ser cega a confrontar ideias contrárias às verdades pré-concebidas que todos aceitam como dogma.
Desde os momentos iniciais em que testemunhamos a selvajaria humana de uma corrida aos saldos em roupa interior até ao cocktail de melancolia pessoal e absurdez monumental da conclusão, “Mug” é um projeto cuja ambição e vontade de gritar contra as injustiças do mundo em muito ultrapassam a sua própria capacidade para articular tais impulsos. Mesmo assim, quando nos deparamos com a raridade de um filme que peca pela saturação de ideias e convicção, há que aplaudir os esforços de todos aqueles envolvidos.
Malgorzata Szumowska prova mais uma vez que é das cineastas mais interessantes do contexto polaco atual, explodindo em epítetos de fúria que muitos poderão encarar como indelicados ou de mau gosto. No entanto, esse mesmo mau gosto contém em si a urgência de uma revolução contra um mundo que se perde em celebrações de ignorância e validações institucionais de preconceito e ódio. “Mug” não é um diálogo ponderado cheio de argumentos fortes, mas sim um murro na cara.
Mug, em análise
Movie title: Twarz
Date published: 29 de December de 2018
Director(s): Malgorzata Szumowska
Actor(s): Mateusz Kosciukiewicz, Agnieszka Podsiadlik, Malgorzata Gorol, Roman Gancarczyk, Dariusz Chojnacki, Robert Talarczyk, Anna Tomaszewska, Martyna Krzysztofik
Genre: Drama, Comédia, 2018, 91 min
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Cláudio Alves - 70
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José Vieira Mendes - 75
CONCLUSÃO
“Mug” é um violento grito de fúria contra a Polónia e sua sociedade doente com preconceitos e hipocrisias católicas. Com aventurosos engenhos formalistas e uma narrativa meio amorfa, o filme está longe da perfeição, mas vibra com a ambição eletrizante de uma cineasta que ama tanto o seu país que está disposta a lhe mostrar todos os seus mais vis aspetos refletidos no espelho distorcido do cinema.
O MELHOR: A convicção febril que todo o projeto trespassa.
O PIOR: A falta de disciplina estrutural na narrativa e a qualidade dispersa de muitas das suas críticas mais cáusticas contra o estado atual da sociedade Polaca.
CA