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O Cinema e a Guerra: ‘O Rei dos Doidos’

‘O Rei dos Doidos’, (1966), de Philippe de Broca é uma extraordinária paródia anti-guerra e um filme bem a propósito daquilo que se está transformando o nosso mundo, a nossa Europa e em particular com a loucura e o absurdo que é o conflito na Ucrânia.

Alguns filmes mostram-se particularmente hábeis em mostrar uma coisa para melhor falarem de outra, mais relevante e actual. E o caso da soberba alegoria O Rei dos Doidos (1966), de Philippe de Broca (‘O Homem do Rio’, 1964, com Jean-Paul Belmondo), que nos mostra como os instintos guerreiros do homem não são nada além de puro absurdo e que os mais loucos, não são exactamente aqueles que pensamos ser. ‘O Rei dos Doidos’ — ou ‘Esse Mundo é dos Loucos’ (este o título brasileiro), ‘Le Roi de Coeur’ ou ‘King of Hearts’ — é uma fábula anti-militarista e anti-guerra, que parte de um conceito muito simples e que nos leva a fazer uma profunda reflexão, que apesar de datada é implacavelmente actual, sobre os tempos absurdos que vivemos com a estupidez da guerra na Ucrânia.

O Rei dos Doidos
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O argumento escrito por Maurice Bessy e Daniel Boulanger, num filme falado em inglês francês e alemão, nasceu de uma notícia sobre a eliminação de 50 doentes mentais franceses por soldados alemães num hospital durante a I Guerra Mundial: tinham-se vestido com os uniformes de soldados americanos falecidos, foram andando pelo campo, quando os alemães os fuzilaram por engano. A ação de ‘O Rei dos Doidos’, começa em 1918, no final da I Guerra Mundial e com mais a Segunda, nós europeus já devíamos ter aprendido alguma coisa. Mas continuando, com o filme de De Broca, com a derrota nas trincheiras, o exército alemão deixou para trás várias bombas, prestes a explodir nas aldeias francesas. Por esse motivo, Marville, um típica localidade francesa na Lorena, é abandonada pelos seus habitantes. Porém não ficou deserta já que os pacientes de um asilo de loucos, agora livres, tomam posse do local e divertem-se à brava.

O Rei dos Loucos
Os loucos são menos loucos do que pensamos. | via Fildebroc

Um improvável herói, o desajeitado soldado escocês, Charles Plumpick (um extraordinária e incrível interpretação de Alan Bates), que é na verdade um ornitólogo — o tratador dos pombos-correio, que transportava na época, as mensagens militares — é encarregado pelas altas chefias militares, de encontrar e desarmar a bomba alemã na aldeia. A princípio desconcertado com os costumes e extravagâncias da ‘população local’, no entanto Plumpick acaba por se recebido de braços abertos, ao ponto de gradualmente ir-se soltando com os seus novos companheiros, tornando-se mesmo no seu ‘Rei de Copas’. Ao mesmo tempo, vai sucumbindo aos encantos da adorável Poppy (Geneviève Bujold), sem com isso esquecer a missão, para a qual foi encarregado pela tropa. Fora dos muros da cidade, a guerra continua. E se, sob sua aparência extravagante, os ‘loucos de Marville’ tivessem afinal entendido tudo o que se estava a passar? Porém o filme Philippe de Broca — que aparece num breve e divertido cameo como um soldado parecido com Hitler — não tem uma perspectiva trágica da guerra, pelo contrário é uma notável, nostálgica — transmitida em grande parte pelo rosto de Bates — e colorida paródia, que com ironia e num discurso que pretende ser muito mais abrangente do que os ideais do auge do movimento hippie (make love not war) e das então manifestações contra a Guerra no Vietname: é um verdadeiro filme anti-militarista e anti-guerra, feito na Europa.

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Os loucos criados por Broca, são um incrível grupo de sonhadores que recusam o medo, pois possuem uma compreensão superior e sobretudo mais profunda da vida, preferindo nobremente apreciar o momento na sua redoma de criatividade, enquanto aqueles considerados sãos e normais, estão presos aos seus rituais de guerra, preferindo desperdiçar futilmente suas vidas, acatando ordens, mesmo que não as entendam. É notável também, a galeria de personagens criadas no filme, interpretadas por grandes actores e cada uma mais colorida que a outra, que representam esse lado nobre e etéreo da sua louca existência: o Duque de Clover (Jean-Claude Brialy), o General Géranium (Pierre Brasseur), o gerente de um bordel (Micheline Presle), o cabeleireiro (Michel Serrault) e uma linda e graciosa equilibrista, chamada Poppy — interpretada pela canadiana Geneviève Bujold, a Ana Bolena de Rainha por Mil Dias, que estava então no início de sua carreira internacional como actriz.

O Rei dos Loucos
O par romântico Geneviève Bujold e Alan Bates. via Fildebroc

É maravilhosa e marcante uma das cenas finais, que mostra os pacientes regressando ao portão principal do hospício, uma sequência acompanhada de uma festiva banda sonora de Georges Delerue; dando depois lugar a um silêncio sepulcral, enquanto os loucos, acenam melancolicamente para o seu Rei de Copas (Alan Bates), que depois de cumprida a sua missão, parece querer regressar ao mundo real. Porém, Pumpkin que escuta ao longe o som das máquinas da guerra, acaba dividido entre a genuína alegria, o companheirismo que havia vivido no reino dos loucos e os ilusórios conceitos de virtude e grandeza que o aguardavam do lado de fora do hospício. O contraste é também impactante graças à fotografia de Pierre Lhomme, que trabalha de um forma propositadamente caricatural o uso das cores vibrantes, do vestuário dos loucos, contra a paleta sóbria e cinzenta, que emoldura os militares.

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O Rei dos Loucos
O soldado Pumpkin (Alan Bates), transforma-se no Rei de Copas. via Fildebroc

Diante do espectáculo da guerra, dos soldados matando-se uns aos outros, os loucos preferem antes, e Plumpick com eles, o refúgio de paz que é o asilo. O corajoso burlesco da comédia tornou-se numa espécie de conto filosófico sobre a nossa existência e a alegria de viver em paz. No entanto, a guerra, tem a última palavra. Por isso filme, explora de uma forma muito precisa e inteligente as ligações entre as imagens da poesia e os momentos da estupidez humana que exulta a guerra. A música enfatiza ainda mais esta ideia, com o uso da gravidade dos sons de um violoncelo. Philippe de Broca entrega-se às imagens ultrajadas da comédia, para no fundo explicar o mau sentido ou o absurdo da guerra. Vale a pena, por isso relembrar as suas palavras ditas por ele, uma vez a propósito de ‘O Rei dos Doidos’: ‘Eu já tinha percebido que, para amar o mundo, é preciso a gente distanciar-se dele’. E tem razão! Para quem o quiser ver, o filme está curiosamente disponível no Youtube com o titulo brasileiro e com legendas em português. Aproveitem!

JVM

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