O Dia a Seguir

O Dia a Seguir, em análise

“O Dia a Seguir” é um fugaz e inconspícuo romance de época, que não sabe bem o que quer ser e o que pretende alcançar, elevando-se ligeiramente do vulgo num triângulo amoroso de interpretações competentes.

Já lá vão sete décadas desde a vitória dos Aliados e a queda do Terceiro Reich, mas ainda hoje se contabilizam um sem-número de histórias aprisionadas debaixo daqueles escombros frios e inocentes que, só agora, vão conhecendo a luz do dia – em que se baseia a obra homónima de Rhidian Brook, nesta adaptação demasiado elegante e perfunctoriamente condescendente do inglês James Kent. Ele, que não é nada alheio a fitas emocionalmente antagónicas em tempos de guerra, já que trás na bagagem um outro amor aclamado pela critica “Testemunho de Juventude” de 2014. Seria, pois, de esperar, que Kent tivesse feito jus às suas palavras de querer adaptar o bestseller de Rhidian como “um orfão que precisa de trilhar o seu próprio caminho”, mas a verdade é que Shrapnel e Waterhouse acabam por espartilhar o argumento numa zona de conforto previsível e rotineira, que se vai engasgando na sua falta de ambição.

Lubert (Skarsgård) recebe em sua casa Rachael (Knightley) e o seu marido Lewis (Clarke).

‘O Dia a Seguir’, (…) ao pecar por querer pecar como todos já pecaram, acaba por alavancar-se naquele tipo de produção visual demasiado lasciva com um guião circunstancialmente perfeito, perpetuando (…) aquela sensação fingida de pedantismo e capricho presente nas telenovelas.

Mas é num influxo promissor, que a tela se abre do escuro com um bombardeamento maciço captado do céu invadido, para no mesmo instante limparmos a vista naquele olhar singelo e profundo tão trademark de Keira Knightley (Rachael Morgan), que não consegue disfarçar o seu desdém ariano, naquele comboio cada vez mais inóspito e expatriado à chegada a Hamburgo. Hoje, é a segunda maior cidade alemã, mas no rescaldo da Segunda Grande Guerra, a outrora apelidada de “Veneza do Norte”, mal se conseguia pôr em pé para se ver ao espelho. E é nesse ambiente de falência material e humana, que Rachael reencontra uma saudade desvezada no contacto físico com o seu marido quase esquecido, o coronel Lewis (Jason Clarke) – um oficial britânico incumbido da reconstrução e desnazificação do povo derrotado. E é logo ali, pela vidraça trepidante do seu transporte governamental, que Kent documenta um vislumbre transeunte de duas crianças a calcarem alguém que se perdeu na vista para uma fachada rasgada ao meio, aonde ainda se cortam os cabelos de um qualquer sobrevivente afortunado. Mas Kent, não faz grande questão em deslustrar aquela sua câmara old school com os choros belicosos de uma nação de joelhos, apressando-se em levar-nos para o nobre e resguardado cenário do luxuoso palacete atribuído ao casal Morgan – um ato potestativo, que ditaria o desalojamento dos atuais proprietários: um pai enviuvado, Herr Lubert (Alexander Skarsgård) e a sua filha problemática, Freda (Flora Thiemann).

O Dia a Seguir
Rachael (Knightley) toma o pequeno almoço com Lubert (Skarsgård) e Freda (Thiemann).
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Mas ao invés de “O Dia a Seguir” capitalizar a sua premissa argumentativa num declarado pretexto primitivo de vingança nacional, projeta em Lewis o gesto altruísta e compassivo que o avô de Rhidian havia tido naquele tempo de medidas drásticas e ódios fáceis, ao idealizar que quatro estranhos hostilizados pudessem respeitar-se mutuamente debaixo do mesmo teto, aludindo àquela velha máxima de Príamo, rei de Tróia, de que “até os inimigos podem mostrar respeito entre si”. Algo que para Rachael, camuflada nos píncaros da sua máscara egocêntrica e alto estatuto de fina flor social, só poderia revestir-se na forma mais herética e inqualificável como compensação de culpa pela morte do seu filho num raide alemão. E enquanto Rachael se vai acomodando desconfortavelmente no meio daquela imensidão de metros quadrados ocos e solarengos, é um destreinado piano de cauda no salão principal, que vai quebrando alguma da animosidade com a família intrusa, perante o olhar abandonado e trato gentil de Lubert. É nesses pequenos encontros fortuitos, que Rachael começa a deixar-se minar pela ausência de um marido refém da responsabilidade do seu posto militar, cedendo com alguma facilidade às investidas suaves de Lubert. E esse é o maior equívoco de “O Dia a Seguir”, que ao pecar por querer pecar como todos já pecaram, acaba por alavancar-se naquele tipo de produção visual demasiado lasciva com um guião circunstancialmente perfeito, perpetuando, assim, aquela sensação fingida de pedantismo e capricho presente nas telenovelas.

(…) Shrapnel e Waterhouse acabam por espartilhar o argumento numa zona de conforto previsível e rotineira, que se vai engasgando na sua falta de ambição.

Não será por isso de estranhar, um resultado tão virado para a fotografia como aquele que Kent acaba por fatalmente expressar através de uma distinta cremosidade vintage inerente às lentes “MiniHawk” anamórficas de Franz Lusting, que está mais habituado a florear as suas imagens para os grandes anúncios televisivos, corroborando a inclinação nativa de Kent para o melodrama comercial. E para esse fim meramente recreativo, Skarsgård e Knightley estão mais que habilitados para uns flirts casuais e umas insinuações libidinosas sem terem sequer de abrir a boca, algo que redunda na subtração da racionalidade ao discurso apresentado, sabotando a oportunidade de arrancarem as suas feridas da guerra. Clarke fá-lo com primor apenas no último terço da trama, já congestionada pelas fatiotas pomposas dos convívios da nata inglesa intercalada por encontros clandestinos numa cabana quase tão cliché quanto o seu propósito existencial. E nem a derivação da paixoneta a pedido de Freda por um jovem delinquente pertencente à milícia 88 de Hitler, ajudam a credibilizar uma narrativa tão dócil e presunçosa. De facto, pedia-se muito mais a um épico deste calibre com um enquadramento histórico tão simbólico, que é completamente negligenciado por uma romantização estrita em face do que é, e será sempre, o maior flagelo de toda a humanidade.

O Dia a Seguir
A Mansão de Hamburgo.

“O Dia a Seguir” não é de todo um mau filme. Aliás, de um ponto de vista puramente estético e sonoplástico, possui momentos de altíssimo nível, quer pelo detalhe e textura infundido por Kent no recorte requintado e crueza das suas paisagens interiores e exteriores, quer pelo devido escalonamento emocional extraído do teclado melancólico do calejado compositor de “A Guerra e Paz” (Martin Phipps). Mas em tudo o resto, a longa-metragem de Kent é vítima de uma ideia bem intencionada no papel, que é teimosamente extrapolada num contexto tão sensível e contrastante. Em última análise, “O Dia a Seguir” é como aquela menina bonita, toda aperaltada, que no seu âmago tem bons valores morais, mas que devido às suas inseguranças foca-se mais na sua superficialidade, e só se apercebe disso, quando já é tarde demais.

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O Dia a Seguir
O Dia a Seguir guia dos passatempos

Movie title: The Aftermath

Movie description: Alemanha do pós-guerra em 1946. Rachael Morgan (Keira Knightley) chega às ruínas de Hamburgo, num inverno rigoroso, para se reunir com seu marido Lewis (Jason Clarke), um coronel britânico encarregado de reconstruir a cidade destruída. Mas quando eles partem para a sua nova casa, Rachael surpreende-se ao descobrir que Lewis tomou uma decisão inesperada: o casal irá dividir a mansão com os seus anteriores donos, um viúvo alemão (Alexander Skarsgård) e a sua filha problemática. É nesta atmosfera pesada, que a inimizade e tristeza dão lugar à paixão e traição.

Date published: 1 de May de 2019

Director(s): James Kent

Actor(s): Keira Knightley, Jason Clarke, Alexander Skarsgård

Genre: Drama, Romance, Guerra

  • Miguel Simão - 65
  • José Vieira Mendes - 60
63

CONCLUSÃO

“O Dia a Seguir” poderia ter passado pelos nossos corações e deixado uma impressão mais impactante de um dos eventos mais marcantes da história da humanidade, mas esbanja a sua boa vontade num romance de ocasião fútil e desprovido de conteúdo humanamente significativo. Ainda assim, é um filme visionável, mas apenas para os mais lamechas e perdulários.

O Melhor: Altos valores de produção: fotografia, sonoplastia e guarda-roupa de extrema qualidade; interpretações seguras e competentes.

O Pior: Enredo subdesenvolvido e obsoleto com diálogos vulgares; problemas de cadência narrativa.

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  1. 2 de Maio de 2019

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