Obi-Wan Kenobi, primeiras impressões
“Obi-Wan Kenobi” é um portento visual perfumado de nostalgia, que volta a reconectar-se fervorosamente com as suas raízes mitológicas. Ewan McGregor já não se apresenta com o mesmo vigor de outrora, mas ainda continua a emanar uma força poderosa.
Podemos já afirmar, perentoriamente, que “Obi-Wan Kenobi” não só é a produção televisiva mais relevante do universo “Star Wars” criada até à data, como é a mais focada em preencher os hiatos cronológicos derivados da história mãe (lenda Skywalker), possibilitando, assim, uma maior abrangência e nuance no que ao “character” e “world building” diz respeito. Essa lupa voltada para o detalhe é ainda mais relevante, pois como certamente saberão, Obi-Wan é uma personagem vital em toda a trama galáctica, que marca presença nos seis filmes da saga. Por isso mesmo, estamos aqui a considerar um arco temporal de trinta anos “Kenobianos” desde o jovem Padawan interpretado pelo possante Ewan McGregor em “A Ameaça Fantasma“, até ao velho eremita envaidecido nas barbas filosóficas e na presença eloquente do eterno Alec Guinness em “Uma Nova Esperança“. Simplisticamente, poder-se-á definir historicamente este “Obi-Wan Kenobi” simultaneamente como uma prequela do quarto episódio, e uma sequela de “A Vingança dos Sith“, separando duas décadas de acontecimentos ainda com muito boa seiva para brotar da sua narrativa.
Assim sendo, Deborah Chow – a mente criativa por detrás deste “Obi-Wan” -, que já havia dirigido dois episódios em “The Mandalorian“, não perde tempo em levar-nos pela estrada da memória, numa súmula preambular de quatro minutos alusivos aos três primeiros capítulos cinematográficos, atracando a narrativa uma década à frente do infame ataque ao Templo Jedi imposto pelo decreto da insidiosa “Ordem 66”. Se bem se recordam, nessa partitura maléfica instigada por Darth Sidious (Palpatine) para rematar “A Vingança dos Sith“, todos os guerreiros Jedis foram perseguidos e eliminados pelas forças imperiais, à semelhança do que aconteceu aos samurais com a restauração do governo Meiji em 1868. Tal analogia histórica não surge aqui como inocente, já que Chow socorre-se dos westerns de Kurosawa, Hillcoat e Ford como linha de partida para a contenda entre vilão e herói num ambiente “faroestiano futurista”, que, diga-se de passagem, ventilou toda a tonalidade estética e estrutura argumentativa de “Star Wars”, sobretudo das “Guerras” mais clássicas. E tal como é apanágio dos “western spaghetti” ou “bang-bang”, os antagonistas apressam-se em marcar território com um funesto trio de “Inquisidores” – uma espécie de guarda pretoriana de Darth Vader -, incumbida de localizar, recrutar ou exterminar a restante fação de dissentes proscritos sensíveis à Força.
Avistados em primeira instância na série animada “Star Wars Rebels“, estes agentes pidescos kabukianos impõe respeito com as suas indumentárias gótico-espacias e posturas austeras, claro está, em que se destaca a impulsiva e desafiadora Reva (Moses Ingram), que não raras vezes contesta a diplomática coerção psicológica levada a cabo pelo Grande Inquisidor (Rupert Friend) na obtenção de resultados práticos. Como já devem ter alcançado, quando o membro de um grupo se rebela contra a sua autoridade hierárquica, criam-se dinâmicas interpessoais de imparidade melodramática, que são o ganha pão essencial dos distintos planos apertados deste género de ação mais “face-to-face”. Não vamos obviamente “spoilar” o papel de Reva nesta nomenclatura movediça de alianças e interesses, mas podemos entreter-vos com a ideia da sua obsessão pela captura de Obi-Wan, que pelo meio aflora mais do que nunca o debate sexista, numa altura em que a franquia tenta ser mais inclusiva ao afastar-se da centralidade racial caucasiana das personagens intervenientes de outros tempos.
E enquanto o interrogatório torturante prossegue numa toada bem morninha na taberna lá do sítio, numa homenagem à famosa cantina de “Mos Eisley” – a maior cidade aéro-portuário do estéril planeta Tatooine -, só para nos avivar a memória daquele “easter-egg” que junta Han Solo, Obi-Wan, Luke e Chewbacca no mesmo local a confraternizar com a excêntrica fauna mercenária do “Episódio IV“; o Mestre Kenobi agora conhecido somente como Ben, enterrou o seu sabre de luz nos esquecidos grãos de areia do deserto para ganhar a vida como um vulgar cidadão, que recebe a maquia do seu trabalho ao final do dia e anda de transporte público. É uma transição que requer algum ajuste visual e contextual, esta que faz um grande guerreiro Jedi despojar-se das suas crenças e valores para viver uma vida irrisória de penitência, apesar de continuar a honrar a sua promessa de acompanhar o crescimento de Luke à distância.
Por outro lado, esta metamorfose no guião psicológico desta personagem vai apanhar aquele Ben (Obi-Wan) tridimensional da segunda trilogia com uma vulnerabilidade mais empatizável com o espetador, que Chow faz catapultar em larguíssimas panorâmicas solitárias de Obi-Wan a atravessar o Mar das Dunas com o seu camelo Eopie, ou na invocação de visões traumáticas do passado durante o sono. Portanto, há aqui uma abordagem mais conservadora no que diz respeito ao posicionamento do protagonista na trama, que valoriza o impacto crescente da expressão facial e a envolvência dos diálogos, secundarizando os segmentos de pura ação, o que poderá entediar alguns, mas vai gratificar os mais pacientes e curiosos. E se até agora só tínhamos sentido este lado mais intimista e introvertido no Kenobi veterano replicado por Guinness, McGregor transporta a tocha espiritual dessa sua versão com equiparável carisma e mais algum jogo de cintura representativo.
Mas nem só de Kenobis poderia viver o seu live-action biópico, sem que a entrada na máquina do tempo deixasse passar despercebidas outras figuras míticas desta ópera espacial, uma vez que não nos podemos esquecer do tremendo legado deixado por Luke e Leia que aqui ainda são meras crianças. Compreensivelmente, a pequena princesa de Alderaan desvia uma parte das atenções, para já, com o guião de Joby Harold a moldar a personalidade da futura líder da Resistência, como um subproduto da amálgama de influências pessoais e vivenciais retidas ao longo da saga. Ao cuidado dos pais adotivos Organa, o memorável senador (Jimmy Smits) volta a receber o eterno papel depois da sua aparição em “Rogue One“, fazendo parelha parental com Simone Kessel (Breah), que é a única atriz a substituir alguém do elenco original.
Vivian Lyra Blaire parece um peixe na água na pele desta Leiazinha de dez anos, já bastante espigadote para a idade, revelando-nos algumas facetas muito imprimidas por Carry Fisher na sua conceção mais adulta, como aquela sua indomável inclinação para a insubordinação de sistemas normativos rígidos, ou a honesta e sincera frontalidade retórica, que não deixam de ser também uma lição dirigida à parentalidade. Na verdade, metade da “Primeira Parte” e toda a “Segunda Parte” são mais dela do que de Obi-Wan, embora os dois não se descolem devido à sua conexão intemporal, que remete mais uma vez para um evento no filme de setenta e sete. Aliás, a história de Obi-Wan é quase uma repetição anacrónica de certos acontecimentos futuros, e mais não podemos desvendar para não colocarmos todas as peças do puzzle por vocês, especialmente por respeito aos que ainda não viram “Obi-Wan Kenobi”. O regresso de Christensen como Vader já é “old news”, e parece estar a ser guardado como cartada final.
E do que seria um “spinoff” intergaláctico sem as típicas viagens interplanetárias? Sobre isso temos a dizer que ficámos surpreendidos pela positiva com a introdução do planeta Daiyu, que segundo a gíria é um território controlado pelo Império, com uma espicaçante vibe mais compósita e menos geológica a puxar ao “cyberpunk”. A existência desta cidade neonizada é, claramente, uma reverência a outro clássico do cinema, “Blade Runner”, assentando que nem uma luva na excêntrica panóplia de povos e raças afetas a “Star Wars”. A mise-en-scène deste cenário em particular é mesmo impactante, não só pelo colorido dos placards luminosos, mas também pela diversidade do “costume design”, que confere corpo, dimensão e personalidade a Daiyu, convidando a muita troca de mimos, se é que percebem aonde queremos chegar. Depois de tudo dito e feito, “Obi-Wan Kenobi” deixou-nos com água na boca e renovou em nós uma nova esperança de que, a mística de “Guerra das Estrelas” não continua a esmorecer no lado negro da superficialidade e insignificância…
“May the Force be with you”
Já podem visualizar os três primeiros episódios na plataforma da Disney+
Miguel Simão
“…secundarizando os segmentos de pura ação, o que poderá entediar alguns…”. Pois é… Grosseiramente traduzindo, Obi Wan aparece como um senhor amedrontado, uma mera sombra do Jedi de outrora. Muita conversa, muita encheção de linguiça, pouca ação e nada de Ben voltando a ser um Jedi de verdade (pelo menos até o 4º capítulo). Deveriam mesclar melhor ação e drama, além de – em minha modesta opinião de quem está perdendo a paciência pra assistir a série – rever o papel de Obi Wan. Decepcionante.