"Onde Estás, Bernadette?" | © NOS Audiovisuais

Onde Estás, Bernadette?, em análise

Cate Blanchett é a complicada protagonista de “Onde Estás, Bernadette?”, a mais recente comédia do realizador Richard Linklater.

Dizer tal coisa é cliché, mas é certo que, por vezes, nós somos os nossos piores inimigos. Tais verdades são difíceis de engolir e ainda mais difíceis de aceitar. Essa dificuldade não faz delas mentira, contudo. Gostaríamos que assim fosse tal como gostaríamos de nos amar a nós mesmos. Só que a vontade e o querer não fazem com que tudo se concretize e o amor próprio pode ser uma impossibilidade que nem a mais pura perseverança consegue materializar. Quando a nossa razão para viver, quando aquilo que nos dá propósito e nos faz sentir necessários é violentamente destruído diante dos nossos olhos, dessa impossibilidade nasce a flor fétida da depressão, do cinismo e da rabugice antissocial.

Bernadette Fox bem conhece os aromas venenosos dessa flor. Fechada num casarão decrépito, a antiga arquiteta faz tudo para se isolar e não ter de sair da privacidade do lar. O seu marido é um visionário da indústria tecnológica, pelo que ela nem se tem de preocupar em trabalhar para subsistir. Pelo contrário, o centro de todos os dias de Bernadette é a filha que ela tanto adora e que, no mundo todo, parece ser a única pessoa que realmente a compreende e aceita seus trejeitos mais abrasivos. Para o resto do mundo, contudo, a protagonista de “Onde Estás, Bernadette?” é uma gárgula grotesca e arrogante, sempre altiva e com óculos escuros, um ar de desdém no sorriso falso e um comentário sardónico pronto na ponta da língua.

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Ela é interpretada por Cate Blanchett pelo que as suas qualidades mais abrasivas são facilmente obscurecidas pelo carisma inato da atriz. Isso não quer dizer que essas arestas de personalidade não estejam lá e não sejam aguçadas. Esta estrela, duplamente Oscarizada, finca os dentes no papel e deixa-se levar pelos seus excessos, oscilando entre drama humano e comédia despregada do mesmo modo que Richard Linklater o faz na cadeira de realizador. Trata-se de uma alquimia tonal cheia de contrastes e arriscadas reviravoltas e a verdade é que nem sempre funciona sem mácula. Quando o filme começa, parece ser uma paródia com cheirinhos de sketch de SNL. Afinal, “Onde Estás, Bernadette?” até tem Kristen Wiig no elenco.

Tudo começa no inferno suburbano onde Bernadette vive com a família. A sua vizinha bisbilhoteira é uma irritação constante e as demandas da vida doméstica são um tédio tão potente que a dona-de-casa parece estar a dois passos da loucura. Felizmente, neste tempo de tecnologia omnipresente, umas chamadas e mensagens intercontinentais compram a ajuda de uma assistente pessoal indiana que faz tudo. Mesmo tudo, desde encomendar mercearias a planear uma elaborada viagem familiar à Antártida. Este último afazer nasce do desejo da filha de Bernadette, tão nova e já a meio caminho de ser tão excêntrica como a mãe.

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No entanto, nem tudo é o que parece e estas benesses de comodidade digital revelam ser uma armadilha. No espaço de uns dias, tudo começa a desmoronar a começar por um deslizamento de lamas e a acabar com o desaparecimento repentino de Bernadette. Atenção que isto não é nenhum mistério desconstruído à la “Em Parte Incerta”. Linklater mantém sempre a audiência a par do paradeiro da sua protagonista, reconfigurando a sua comédia espalhafatosa num estudo de personagem tão sincero que é capaz de provocar revirares de olhos espontâneos em quem não tenha tolerância para lamechices.

Estas cambalhotas sentimentais têm vindo a causar muita ira entre a crítica internacional. O filme, adaptado de um romance epistolar de Maria Semple, esteve anos em pós-produção e os palimpsestos da montagem são bem visíveis no produto final. Há cenas que parecem acabar cedo demais, personagens que estão transplantadas de subenredos abandonados e uma geral atmosfera de indisciplina e desorganização. Não admira que tanta gente deteste este filme e o aponte como um ponto baixo na filmografia dos seus célebres cineastas. Pelo que nos compete, vemos valor na mixórdia tonal que o filme oferece aos espectadores.

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Um estudo de personagem não tem necessariamente de ser claro para bem representar a psique do indivíduo. Quando a figura em questão é alguém tão complicado como Bernadette, a incoerência cinematográfica é quase obrigatória. Se a experiência de ver o filme fosse mais ordeira, pareceria uma traição à identidade idiossincrática da protagonista. É claro que, pelo mesmo pensamento, é difícil não considerar que os epítetos mais sentimentais da obra são um tanto ou quanto contrários ao cinismo ácido de Bernadette. Enfim, esta mulher contém multitudes e assim também acontece com o filme com o seu nome.

Um problema mais difícil de ignorar ou desculpar é a falta de consistência do elenco. Cate Blanchett está estupenda no papel principal e, na pele da vizinha irritante, Kristen Wiig consegue dominar uma contracurva de caracterização com aparente facilidade. O problema é Judy Greer, é Billy Crudup, é Laurence Fishburne e tantos outros. Esses nomes sonantes só distraem o espectador e cada um parece achar que está num filme diferente. Crudup, em particular, é completamente incapaz de acompanhar os rumos mirabolantes por onde a história de Bernadette o encaminha. Enfim, mesmo para quem deteste o resto do filme e se deixe levar à revolta pelo elenco descontrolado, a cenografia é uma boa mais-valia. Se a protagonista de um filme é uma suposta mestra da arquitetura, não podíamos esperar outra coisa.

Onde Estás, Bernadette?, em análise
Onde Estás Bernadette?

Movie title: Where'd You Go, Bernadette?

Date published: 6 de December de 2019

Director(s): Richard Linklater

Actor(s): Cate Blanchett, Billy Crudup, Kristen Wiig, Laurence Fishburne, Judy Greer, Megan Mullally, Steve Zahn, Zoe Chao, Kate Burton,

Genre: Comédia, Mistério, Drama, 2019, 109 min

  • Cláudio Alves - 70
  • José Vieira Mendes - 60
65

CONCLUSÃO:

O retrato de um génio excêntrico é uma comédia excêntrica e estrambólica, deliberadamente inconsistente e acidentalmente desastrada. Orientado por um grande desempenho da sua atriz principal, “Onde Estás, Bernadette?” é um esforço menor de Richard Linklater. Contudo, não é por isso um filme sem valor ou com pouco a dizer. Há aqui algumas preciosidades de observação humana e arquitetura emocional para quem tiver paciência.

O MELHOR: A cenografia mirabolante e a destemida prestação de Cate Blanchett.

O PIOR: As cicatrizes da montagem que ficaram por sarar, a falibilidade do elenco secundário e a estrutura disfuncional de um filme que, claramente, devia fazer como o livro e só começar com o desaparecimento da personagem principal.

CA

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